Odette de Barros Mott (1913-1998)

Odette de Barros Mott (1913-1998)

 

Se viva fosse, a paulista Odette teria completado 110 anos no último dia 24 de maio. Odette é Odette de Barros Mott (1913–1998). Talvez vocês não se lembrem dela ou até nunca tenham ouvido falar: uma pena. Em compensação, do seu filho temos ouvido falar bem e bastante por esses dias. Refiro-me ao conhecido antropólogo Luiz Mott, defensor dedicado dos direitos LGBTQIA+ e autor de um livro que, numa nova edição, está nas prateleiras físicas e online do País: “Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil”.

Mas vou falar da mãe, que é tão ilustre quanto o próprio filho, senão mais.

Como nos informa uma rápida pesquisa na internet, “Odette foi uma proeminente escritora brasileira de ficção juvenil e infantojuvenil. Com mais de um milhão de exemplares vendidos e mais de sessenta títulos publicados, foi uma das precursoras da literatura infantojuvenil no Brasil”. Tais são os números de Odette, e deles não duvido. “Sic transit gloria mundi.” Ela também recebeu os prêmios Monteiro Lobato e o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel de sua área literária. Embora tenha estreado como poetisa, foi na literatura infantil que ancorou a sua extensa obra. Uma produção que começou em 1949, com “Aventura no país das nuvens”, e que só foi interrompida por sua morte, aos 84 anos. Ao que parece, foi grande seu diálogo com o público leitor, o que a fez acolher e abordar temas como drogas, sexo, racismo e relacionamentos.

Agora, passo a uma parte que bem poderia ser intitulada “Odette e eu”.  

Fui às águas nunca escassas da infância e lá, por assim dizer, repesquei a minha Odette. Diria: a minha única Odette! Mas uma Odette que provavelmente reúne e recorda as qualidades da escritora que tão querida foi dos brasileiros. Logo tudo ficará mais claro. Conto o caso como o caso foi.

Estive “entre santos”, não à maneira de Machado, mas de um modo prosaico, embora não de todo prosaico. Procurava uma imagem para presentear um amigo católico. Com todo o respeito, tive que dispensar santos ilustres e bem conhecidos dos brasileiros, certo de que seria perdoado por todos. Entre santos, quem diria? De repente, que vejo? Uma estatueta de um menino negro, acompanhado de uma vassoura, de dois cachorros de rua e de um gato. O menino parecia me chamar, a doçura da sua expressão iluminava a manhã. O menino se quis presente na minha santa ignorância. Era ninguém menos que São Martinho de Lima (1579–1639), ou Martinho de Porres, ou de Porras, canonizado em 1962 pelo Papa João XXIII, filho ilegítimo de um nobre espanhol e de uma negra alforriada. Portanto, um mestiço e com todo o estigma de um tempo histórico de preconceitos e injustiças sociais.

A “revelação” do menino logo me mergulhou nas águas profundas da minha infância católica. Ainda pequeno, recebi de presente o livro “Nhá Dita contou”, que narra para as crianças a vida do santo peruano. Bem, vocês aqui já adivinharam quem escreveu esse livrinho. Sim, ela mesma: Odette de Barros Mott.

Fui em busca da rubrica “Infância” em minha biblioteca, e lá estava a história esquecida que a estatueta do santo, como uma madeleine proustiana, tornara a repor  na minha vida consciente.

Não obstante escrito numa linguagem simples e acessível às crianças, “Nhá Dita contou” usa belamente um recurso literário conhecido como “mise en abyme”, que tem um efeito de espelhamento. A personagem narradora, “preta, gorda, simpática e serviçal, é verdureira” e viúva. Seu filho pequeno, o Ditinho, tem um secreto desgosto: queria ser branco! E é discriminado, apesar de estudioso e inteligente. Enfim, na criança se espelha o mesmo comportamento (induzido pela sociedade, claro) de São Martinho, que, em sua infância, “achava feio ser mulato” e queria se assemelhar ao pai, nobre e branco… Dessa forma, sem aparentemente se dar conta ou estrategicamente silenciando as afinidades do santo e do filho, Nhá Dita passa a contar a história de São Martinho não só a Ditinho, como a seus jovens amigos. Assim, entrelaçado a uma mundividência cristã e piedosa, o tema do racismo (não o único do livro!) é abordado com delicadeza e criatividade.

Essa foi a “minha”, como já disse, única Odette. Confesso que, infelizmente, “Nhá Dita contou” foi o primeiro e último livro que li dessa fecunda e importante escritora, agora desconhecida de crianças e jovens, mas, ao que parece, lida e estudada (“meno male”) nas universidades. Viva Odette, que tanto fez pela leitura no Brasil, e viva São Martinho de Lima, que ainda em vida já fazia milagres…