A tradutora e jornalista Rosa Freire D’Aguiar vem de publicar um delicioso livro sobre seus tempos de correspondente em Paris, nas décadas de 1970 e 1980. Mas a obra é mais que um percurso autobiográfico, pois também reúne 21 entrevistas com importantes personalidades do mundo cultural da época. Ao nos devolver aos ares de então, Rosa, com agudo senso histórico e social, faz-nos respirar a atmosfera forte das mudanças e a presença da literatura como uma importante aliada.

A híbrida estrutura de “Sempre Paris: crônica de uma cidade, seus escritores e artistas” abriga duas partes: a autobiográfica e as entrevistas. A primeira parte contextualiza a segunda. O estilo é ágil, bem-humorado e quase febril, com o inocultável prazer de nos apresentar uma França tão próxima quanto distante do Brasil. Na segunda parte (que, a rigor, não deixa de também ser biográfica), encontram-se 21 entrevistas realizadas pela correspondente carioca em terras francesas. Tais conversas eram originalmente um material que dormiu até as solidões da pandemia do novo coronavírus. Dormiu não, “beladormeceu”, como diria Guimarães Rosa. Era um livro que pedia para nascer ou acordar, eram palavras que novamente instavam para ser lidas e relidas. “A traça não pode com a alfazema”, como também falou o pai de Riobaldo e Miguilim. Rosa pôs mãos à obra (afinal, sobrava-lhe alfazema para zombar das traças), e o amor a Paris e à literatura fizeram o resto.

Como qualquer leitor de “Sempre Paris” logo notará, a autora soube fazer seus ilustres entrevistados falarem e, mais que simplesmente falarem, se expressarem sem adiposidades, crivando-os são-sebastianamente de flechas certeiras e agudas. Santo sacrifício para o prazer dos leitores de então e para deleite dos pósteros de agora!

Ares do mundo? Claro, sobretudo se, em negativo, pensarmos num Brasil àquela altura sufocado por um regime dito de “democracia relativa” ou de “democracia à brasileira”, expressão esta glosada pelo inesquecível advogado Sobral Pinto, que, ao ouvi-la de um defensor do regime, fez questão de dizer que “à brasileira” ele só conhecia o… “peru à brasileira”! Ares do mundo: olhos sobre a política internacional (área coberta pela jornalista) numa França vibrante e num tempo em que surgiram e fervilharam, para o bem e para o mal, dentre outros eventos, a era Mitterand, os chamados “novos filósofos”, a redemocratização da Espanha, a revolução dos aiatolás no Irã, as ditaduras latino-americanas, além do realismo mágico literário que conquistou as margens do Sena… Ares do mundo, personagens que se agigantaram com o tempo ou já imensos em sua própria época…

De fato, é uma constelação de gigantes o que Rosa nos oferece, tomando ao efêmero da imprensa algo em que sentimos o apelo da permanência e da reflexão. Eis aí vozes que continuam a reverberar e que (só para citar alguns de seus donos e donas) ressuscitam Ernesto Sabato, Eugène Ionesco, Fernand Braudel, Norma Bengell, Julio Cortázar, Georges Simenon, Simone Veil, Raymond Aron e Roland Barthes.

De minha parte, sem poder obviamente trazer do livro para esta resenha todas as frases e considerações que gostaria, não resisto a deixar à reflexão dos leitores algumas palavras de Ionesco, o célebre criador do Teatro do Absurdo, que veio três vezes ao Brasil, inclusive ao Recife, onde palestrou na Fundação Joaquim Nabuco para um grande e repleto auditório.  Palavras, sem trocadilho, absurdamente atuais: “Os políticos desconhecem a importância da cultura, e, por isso, vivemos uma fase de embrutecimento do espírito […]. A política tomou a frente de todas as expressões […], o que é péssimo, [mas] ela não passa de um combate insensato pelo poder”. Palavras que parecem, de certa forma, ecoar Freud nestes nossos tempos (os de sempre?) de insanos conflitos: “Tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”.