Lincoln

Lincoln

Era de extremos. Açulada por figuras insólitas. Voltadas ao improvável. Que, agora, alcançam mais que os dedos de uma mão: Trump, Bolsonaro, Maduro, Ortega, Orban, Milei. À direita. Ou à esquerda. Não importa. Porque a frustração política não pede certidão partidária. Busca transformação social. Embora com risco de autoengano.

Em época como essa, é útil olhar os rochedos. O calcáreo. As pedras firmes. Aquilo que resiste à intempérie. A referência. Dirigir é um dom. Uma sensibilidade peculiar. De alguns poucos. Como Winston Churchill, Charles de Gaulle, Nelson Mandela, Yitzhak Rabin. E Abraham Lincoln.

Havia lido, há tempo, uma biografia de Lincoln, 16º presidente norte-americano (1809-1865). E vi uma elogiada biografia escrita por Doris Kearns Goodwin. Saquei. Li. E reli. Lincoln trazia a rosa dos ventos na mão. Rosa dos ventos, como se sabe, é representação gráfica dos pontos de orientação na Terra. Norte, Sul, Leste, Oeste. Ou seja, ele sabia para onde ir.

Penso que Lincoln carregava dupla rosa dos ventos. Uma rosa dos ventos de fora para dentro de si. Que lhe indicava a direção dos fatos. A origem dos acontecimentos. A viagem das nuvens. E outra rosa dos ventos de dentro de si para fora. Intuindo o rumo dos homens. Inferindo a lealdade de uns. A ambição de outros. O caráter de todos.

Anotei cinco características na extraordinária personalidade de Lincoln: autoconfiança, persuasão, espírito de liderança, percepção do bicho homem e senso de solidariedade.

Autoconfiança.

Na primeira disputa presidencial, de que ele participou, era pouco conhecido. Advogado de província. Com pouca bagagem política. Lutou pela indicação, no Partido Republicano, com três experientes políticos conhecidos no país: o senador por Nova York, William Seward; o governador de Ohio, Salmon Chase; e o estadista do Missouri, Edward Bates. Venceu os três. E os convidou para comporem seu gabinete. E atuarem como secretário de Estado, secretário do Tesouro e secretário da Justiça, respectivamente. Nada menos. Comandou brilhantemente a equipe. Sem medo de sombra.

Persuasão.

Lincoln não era de muitas palavras. Gostava da concisão. No discurso de posse, inspirou-se em quatro obras: a Constituição, texto de Andrew Jackson e discurso de Daniel Webster. Buscou equilibrar o conteúdo de dois conceitos: o poder que acabara de assumir e a conciliação em país às portas da guerra civil.

No final do discurso, conclamava: “Não somos inimigos, somos irmãos e compatriotas. Embora as paixões esgarcem nossos laços, não devemos desfazê-los. Os acordes da memória, que se estendem em cada campo de batalha até cada lar, por todo este vasto país, ainda irão se unir ao coro da União”.

Liderança.

Cercado por homens, na política, mais experientes que ele, Lincoln foi, aos poucos, conquistando a admiração dos ministros. Consolidando seu perfil de líder. Pela serenidade, firmeza e capacidade de decidir. Os auxiliares foram percebendo sua habilidade política. E sua energia no trabalho. Seward chegou a dizer; “Ele é o melhor de nós”.

Percepção do bicho homem.

Fato comum em todo governo, no gabinete de Lincoln ocorreu também uma discordância entre Seward, secretário de Estado, e Chase, secretário do Tesouro. Chase arregimentou senadores para sua banda. E colocou em xeque seu colega secretário de Estado.

Lincoln convidou os senadores para uma conversa no seu gabinete. E abordou a questão. Os senadores apoiaram, em parte, Seward. Ele encerrou a reunião. E, como consequência, os dois secretários entregaram cartas de demissão ao presidente. Lincoln recebeu cada um. Devolveu as cartas de missão. E lhes disse que a questão fora pacificada entre os senadores e o Executivo.

Senso de solidariedade.

Em novembro de 1863, o governo resolver consagrar área para construir o cemitério de Gettiysburg. Local de uma das mais duras batalhas entre a União e os Confederados. Vencida pela União. A oração principal seria feita pelo ex-diretor de Harvard, Edward Everett. Depois dele, o presidente falaria.

Assim foi feito. Como sempre, o discurso de Lincoln foi curto. E, por ter sido certeiro no propósito e convincente na forma, tornou-se paradigma de expressão presidencial. Começou dizendo:

“Há 87 anos, nossos antepassados fizeram surgir neste continente uma nova nação, concebida na Liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens são criados iguais”.

E prosseguiu: “Cabe a nós, os vivos, consagramo-nos à obra incompleta que aqueles que aqui morreram empreenderam com tanta nobreza. Cabe a nós consagrarmo-nos aqui à enorme tarefa que temos pela frente – que desses mortos que aqui honramos possamos extrair uma devoção maior à causa pela qual se dedicaram, que nós aqui assumamos o compromisso solene de que estes homens não tenham morrido em vão.”

Quando Lincoln terminou, o público ficou imóvel. Em silêncio. Digerindo as palavras poderosas do presidente. Finalmente, veio o aplauso forte, consciente. Lincoln havia traduzido perfeitamente o sentido da história do país. E o significado da guerra e do futuro.

Essa é a dimensão profunda da responsabilidade de governar. Pensar nas coisas permanentes. E não na curteza do imediato. Pesar a relevância do coletivo, que dá solidez, e não o parcial, que fragmenta.

Por isso, ele venceu a reeleição em 8 de novembro de 1864. Em todos os estados. Com exceção de três: Nova Jersey, Delaware e Kentucky. Com 212 votos contra 21 no colégio eleitoral. E, no voto popular, com diferença superior a 400 mil votos.

Lembrado como o presidente que não praticava hostilidade com ninguém. E que tinha o senso do humano com todos.