Nostradamus

Nostradamus

Antecipar expectativas do futuro é uma prática corrente da humanidade. Pessoas, empresas e governos precisam refletir sobre as possibilidades de evolução das circunstâncias futuras para tomar decisões. Isso se chama planejamento. Mas o bom-senso sugere que o futuro é incerto e indeterminado e que, portanto, não dá para fazer uma previsão com segurança dos acontecimentos futuros. E, no entanto, não se pode tomar decisões sem alguma antecipação do futuro. O que sobra, então? Recorrer aos astros e pedir ajuda aos videntes? Tem quem o faça. O atual presidente da Argentina, Javier Milei, já disse que recorre ao tarô (além de escutar o seu cachorro morto) para tomar decisões, o que pode indicar um futuro nada promissor deste belo e curioso pais. Para quem não acredita nessas alternativas mágicas, cabe fazer um esforço de reflexão sobre as probabilidades de ocorrência de eventos e dinâmicas futuras da realidade, observar as tendências e o sinais de mudança. Só tem uma regra básica para os que pretendem orientar suas escolhas: não adotar como certas e seguras as suas hipóteses de probabilidades. Como diz o sábio ditado árabe, “Aquele que prevê o futuro, mente, mesmo quando diz a verdade”, ou seja, mesmo quando, eventualmente, acerte na previsão, no momento em que foi formulada era apenas uma possibilidade e, se afirmada como certa, foi uma grande mentira.  

Toda virada de ano, videntes de todas as ferramentas, tarô, cartas, astrologia e bola de cristal fazem previsões para o futuro, anunciando desastres, mortes ou alguns acontecimentos dramáticos para o mundo, países ou pessoas. Em vários casos, eles anunciam eventos tão genéricos e altamente prováveis, segundo as tendências e as análises científicas que se escondem por trás da magia, como a previsão de um mundo enfrentando eventos climáticos extremos, calor e frio intensos, tempestades, enchentes, pessoas desabrigadas e mortes. Mas também arriscam afirmar acontecimentos com pessoas públicas, como a cigana Sulamita que prevê a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro neste ano de 2024, evento bastante provável considerando os vários processos que correm na justiça contra ele. Mas ela vai mais longe ao anunciar a morte do Papa Francisco neste ano. Embora ele seja idoso e esteja bem doente, indicando que não viverá muito tempo, afirmar sua morte nos próximos 12 meses é uma mentira, mesmo que ocorra, e muito arriscado para sua reputação de vidente. Em todo caso, como ninguém vai lembrar desta previsão quando o Papa aparecer na varanda do Vaticano em janeiro de 2025, a previsão não será desmentida. No entanto, mesmo que acerte na previsão, terá mentido (como diz o ditado árabe) quando a formulou nestes primeiros dias de 2024. De qualquer modo, desejamos que o Papa Francisco tenha ainda muitos anos de vida. 

E como os que jogam as cartas e tiram conclusões dos astros têm também viés político, a cigana mostra a sua simpatia ideológica quando anuncia que, neste ano, vai haver uma perseguição a certos políticos do Senado e da Câmara, principalmente, àqueles “que são patriotas de fato”. Ainda sobre o Brasil, a Mestra Tala, outra vidente, antecipa que “no campo político terão muitas mudanças e, no fim, vai ser uma mulher que será presidente”. Como, evidentemente, não temos eleições presidenciais em 2024, ela deve estar sinalizando para 2026, o que pressupõe que o presidente Lula da Silva não será candidato à reeleição. Não dá para saber se as suas cartas estão torcendo pela volta de Dilma Rousseff ao poder, numa reedição do desastre, ou se têm simpatia por Gleisi Hoffmann. Quem sabe, a presidente do PT consultou o tarô de Mestra Tala e, por isso, acreditando na eleição de uma mulher, tenha decidido lançar a guerra contra o ministro Fernando Haddad, mirando a sucessão presidencial.

Na economia, os videntes discordam tanto quanto os economistas, embora entre estes predomine um otimismo moderado e até crítico em relação ao desempenho econômico do Brasil em 2024. Mãe Michelly vê um futuro muito promissor: o “Brasil entrega o ano de 2024 com uma resposta bem positiva. A economia vem melhorando gradativamente. O primeiro semestre não tem uma grande melhora, mas no segundo tem uma melhora bem expressiva”. Já o Mestre Lukas anuncia, ao contrário, que vamos ter “muito desemprego, empresas fechando, crise financeira”, recomendando que os empresários planejem e façam uma reserva financeira para se salvarem da crise. Rigorosamente, esta recomendação vale tanto para o futuro positivo de Mãe Michelly como para a crise anunciada pelo Mestre Lukas. 

Alguns dos videntes têm cuidado de falar em probabilidade e utilizar condicionalidades para a confirmação das suas previsões, o que os protege do fracasso preditivo. É o caso do numerólogo Yub Miranda, quando antecipa que existe “oportunidade de fortalecer as estruturas de poder no país, desde que sejam administradas corretamente”, seja lá o que isso significa. Ou, em outra passagem, que “é provável que ocorram protestos contra as estruturas de poder, com apelos por mudanças”. É provável? Qualquer cientista político diria que sim, é provável, considerando que existem muitos fatores de insatisfação na sociedade que podem provocar manifestações e protestos contra os governantes. Embora a antecipação dos eventos futuros seja semelhante, os cientistas políticos fundamentam sua hipótese numa análise das circunstâncias sociopolíticas e econômicas e nas tendências, e não na falácia de interpretação dos números. O vidente Yub Miranda tem o cuidado de se proteger da “mentira” (prever o futuro) recorrendo à probabilidade, quando anuncia as manifestações de protestos. Mas, mesmo quando recorrem à probabilidade (e não à certeza), os videntes mentem quando afirmam que captaram os eventos futuros nos números, nas cartas ou nos astros.