A Lygia do título não é outra senão a escritora Lygia Fagundes Telles, a maior contista do Brasil. Neste ano de 2023, não a tivesse levado a morte, teria completado 105 anos. Que a leitora ou o leitor me permitam darmos juntos uma volta com ela em sua “barca” de Natal. Volta natalina e nem por isso menos inquietante, além de plena daquelas virtudes literárias que a tornaram uma escritora incontornável de nossos dias. A grande crítica Walnice Nogueira Galvão foi ao ponto: “A literatura de Lygia é sussurro, e não grito, é penumbra, e não luz que cega, é monossilábica, e não loquaz: é uma obra em surdina”. Tenho vontade de acrescentar: obra felina, pois se move em silêncio e nos “embosca” com precisão. Sim, Lygia nos apanha com delicadeza, astúcia e poesia.
Julgo que “Natal na Barca” é um dos seus mais antológicos contos e quase toca no fantástico, que também está presente na sua literatura. A narração em primeira pessoa não impede (pelo contrário, até favorece) que um diálogo, embora eivado de silêncios, assuma um papel essencial na estrutura do texto. Cenário e personagens são logo apresentados: uma pobre barca que, à noite, atravessa um rio em silêncio e solidão, levando “[…] um velho [bêbado e esfarrapado, que resmunga com um companheiro invisível!], uma mulher com uma criança [nos braços, enrolada em panos] e eu”. Uma imagem ambígua ocorre à narradora: “Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal”. Já este abrir-se de cortinas prenuncia que, em algum momento, algo de inusitado e estranho ocorrerá.
Peço licença para prosseguir nesta inevitavelmente falha tentativa de sintetizar e analisar o conto lygiano. A narradora puxa conversa com a desconhecida como se escavasse no silêncio. A criança, que “vai completar um ano”, está doentinha e sendo levada ao médico pela jovem mãe. Em seguida, ficamos sabendo que a mulher perdera um primeiro filho, o qual, ao desejar fazer a mágica de voar, caíra e encontrara a morte. O diálogo entre ambas começa a tecer laços de aproximação. A companheira de viagem também sofrera outra perda: fora abandonada pelo marido, mas “[…] ali estava sem revolta, confiante, intocável. Apatia? Não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas”. No fundo, a conversa revela que é a fé em Deus “o segredo daquela confiança, daquela calma” diante das sucessivas adversidades. A mulher então conta que pediu ao filho morto que lhe aparecesse uma última vez, o que ocorreu num sonho em que a criança brinca com o Menino Jesus no paraíso.
A certa altura, a narradora levanta a ponta do xale que cobria a cabeça da criança doentinha e nos relata: “Deixei cair o xale novamente e voltei o olhar para o chão. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto”. O que contrasta com o que havíamos lido um pouco antes: “A criança agitou-se, choramingando”. O termo “morto”, três vezes repetido na cena, enfaticamente nos diz que a morte passou por ali enquanto as duas mulheres conversavam. Aturdida e inteiramente tomada por uma inevitável empatia, a narradora anota sua angústia: “Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água”. Água fria e escurecida pela noite, mas quente e verde durante o dia, como anteriormente o texto fala. Ao atracar da barca, na despedida, a inesperada revelação. A mãe comenta: “Acordou, o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre. — “Acordou?! Ela teve um sorriso. — Veja… Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face de novo corada. — Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço”.
Eis um conto que reivindica para o Natal seu sentido essencial, sem deixar de sublinhar o quanto a vida é contingente e como que nos oferecida num fantástico limiar. Ao fim, perguntamo-nos: o que se passou? Ao contrário do seu começo, em que tudo é treva, silêncio e solidão, o texto termina com o rosto resplandecente da mãe esperançosa. A barca, vista no início como um “antigo barco de mortos”, fez uma viagem transformadora, na qual a Esperança e o Amor juntam-se a Fé, como se as três virtudes teologais, de fato, dialogassem nas entranhas do texto, invisivelmente destecendo a pesada atmosfera da narrativa. Quer no sonho da jovem mãe, que revê seu falecido filho vivo brincando com Jesus, quer na cena final da chegada da barca, o renascer, o “acordar”, nos remete ao sentido absoluto e transcristão do próprio Natal. “Duas vezes voltei-me para ver o rio [são as últimas palavras do conto]. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente”. A redundância não é gratuita. O “verde”, como se sabe, era uma obsessão cromático-simbólica da grande ficcionista brasileira.
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