Alice Amsden 1943-2012 in memoriam
Estes são fragmentos autobiográficos. Mas a “economista estatista” que vou recordar não sou eu, mas Alice Amsden. Uma estrela da multidão dos “economistas desenvolvimentistas” que costuma ser destacada especificamente como “estudiosa do desenvolvimento liderado pelo estado”.
Alice Amsden foi uma amiga querida, fomos próximas em tempos em que se podia divergir, debater, e continuar amigas. A doença da polarização piorou no século XXI, e resenha já não é a forma de debate que era em George Orwell. Voltei ao Brasil na virada do século, depois de 26 anos em países mais desenvolvidos, demorei a perceber o quanto se tomam críticas de ideias como pessoais. Crítica só ao estilo do “homem cordial”… Interlocutores até podem chegar a uma conclusão do tipo “Ah! tá bom. Ainda bem! não sou eu o ignorante, são minhas ideias que você acha ignorantes…”. Mas a ofendida desiste do debate. Alice nunca desistiu de discutir, e prova disso é nossa correspondência de mais de uma década quando eu já tinha voltado ao Brasil.
Há dias afirmei numa troca de comentários no Facebook – e reafirmo – que perdi o medo de ser chamada “de direita” desde que Alice Amsden, em uma de nossas muitas conversas, disse “you’ve become such a rightwing!”. O tom era brincalhão e claro que não foi em 14 anos de ONU trabalhando sobre subdesenvolvimento que “mudei de direção”. É que Amsden aplicou o rótulo a uma falta de entusiasmo com o “modelo padrão” que ela recomendava aos subdesenvolvidos. E ela nunca conseguia entender que inflação é um problema.
Enviei a ela a resenha que fiz de seu livro “The Rise of the Rest” (Oxford UP 2001) (in revista Política Externa, vol. 11 no. 4, abril-maio 2003) (A edição brasileira desse “Ascensão do Resto” saiu em 2009 pela Editora UNESP.) Alice conseguiu em Cambridge Mass. alguém que a traduziu para ela. Nessa época estava por lá Gilmar Masiero, um economista brasileiro estudioso de países da Ásia e suas relações com o Brasil. Mas Alice não disse quem era o “homem brasileiro” a quem se referiu. Reproduzo aqui a resenha, com uns poucos cortes que não atingem a argumentação. Ela voltou a ser atual, infelizmente, quando se fala em “neoindustrialização”:
“Alice Amsden incluiu o Brasil em sua categoria “resto”, isto é, os países que conseguiram acelerar sua industrialização no pós-guerra. Neste livro sobre ascensão do “resto”, examina as políticas de desenvolvimento aplicadas no pós-guerra por um grupo heterogêneo de onze países, a saber: Argentina, Brasil, Chile, e México, na América Latina; China, Índia, Indonésia, Malásia, República da Coréia e Tailândia na Ásia, e Turquia no Oriente Médio. … Quem não está entre os onze do “resto que ascendeu” está reunido por Amsden como “the remainder”, os que sobraram. Acadêmicos por certo têm mais liberdade terminológica do que organismos internacionais.
Segundo Amsden, a principal característica do “resto” é que alcançou competitividade internacional numa série de indústrias com nível intermediário de tecnologia e sua renda per capita dobrou em poucas décadas. Em 1965, “o resto” forneceu menos de 5% do total mundial do produto do setor manufatureiro; em 1995 essa cifra era superior a 17%. “De que maneira tiveram sucesso esses países que são os principais exemplos de industrialização tardia, por que seguiram um caminho específico e diferente, e o que alguns desses países fizeram para avançar mais que outros – são as questões de que trata.”(p.1)
A proposta é ambiciosa, pois trata-se de buscar experiências, instituições e práticas sociais comuns em países cada qual com uma história (inclusive história econômica) bem diferente. O período abrangido é o do pós-guerra, até meados da década de noventa do século passado. … Continua a linha de pesquisa do livro que a tornou conhecida entre os estudiosos do desenvolvimento, Asia´s next giant: South Korea and late industrialization (Oxford University Press, 1989), que era “o de desvendar o mistério de por que a Coréia do Sul tem crescido tão mais rapidamente que a maioria dos países em desenvolvimento, mesmo aqueles que passaram pela chamada industrialização tardia”.
O livro sobre Coréia foi um marco nos estudos sobre desenvolvimento, tanto pela escala da pesquisa empírica (que incluiu até aprender coreano), como por romper tanto com interpretações do desenvolvimento baseadas na teoria neoclássica quanto com aquelas filiadas à teoria da dependência. Estabeleceu a noção de que a industrialização tardia implicou aprender a competir, e esse aprendizado, mais complexo que aprender a copiar, foi acompanhado por Amsden dentro das empresas e setores industriais. Muita ênfase foi dada ao fato de que a “industrialização tardia” tem como base inicial tecnologias que já eram comercializadas por firmas de outros países. Além disso, envolveu elevado grau de intervenção do estado, que deliberadamente violou vantagens comparativas, alterou custos e distorceu a formação de preços relativos através de subsídios fiscais e creditícios, políticas resumidas por Amsden na fórmula de que a intervenção do estado deve tornar os preços “errados” para compensar as desvantagens da industrialização “tardia”.
Na Coréia, considerou corretos os preços “errados” porque, em troca da ajuda estatal seletiva a empresas nacionais, e mesmo a proteção de monopólios, foram estabelecidos critérios de performance para as empresas, inclusive na exportação. Ao identificar na Coréia uma política de substituição de importações que exigiu que as empresas exportassem, superou a dicotomia, então convencional, entre política de desenvolvimento voltada “para dentro” ou “para fora”.
Com The rise of the rest, Alice Amsden continua seu vasto trabalho de rastreamento de dados, ampliado para onze países, tendo em vista confirmar suas ilações e lições anteriores de política de industrialização. … Amsden carrega nas tintas, tanto quando insiste na semelhança, para mostrar que todo o “resto” tem o mesmo modelo de desenvolvimento, como quando pinta a diferença de abordagem entre o que chama de “independentes” e “integracionistas” a partir de meados da década de oitenta. ( pp.248 e 281-3) Mesmo na última frase do livro (p. 293), quando nota que as duas abordagens não são mutuamente excludentes, insiste que são diferentes e aposta suas fichas na Ásia. Mais que isso, recomenda que os países com possibilidade de seguir o caminho do “resto”, aqueles países dentre “os que sobraram” que têm alguma experiência manufatureira, sigam o modelo dos asiáticos (que coincide com os que classifica como “independentes”). Eis algumas de suas percepções:
- o “resto” já tinha alguma experiência em manufatura de bens de consumo anteriormente à II Guerra, mas essas manufaturas, sobretudo têxteis, só se tornaram importantes depois, quando aquela experiência foi uma condição necessária da expansão industrial do pós-guerra;
- a transferência de tecnologia para o “resto” antes da II Guerra não trouxe redução do hiato tecnológico nem chegou a níveis intermediários de tecnologia. A industrialização dos países do “resto” não avançou antes da II Guerra porque faltou a todos eles o “estado desenvolvimentista”, que só entrou em cena depois da II Guerra;
- a industrialização do “resto” se acelerou quando o setor público se tornou importante na formação de capital (Capítulo 6), quando bancos de desenvolvimento estatais selecionaram setores que receberam subsídios com a condição de cumprirem padrões de performance quanto a tecnologia, administração, conteúdo local e, nos melhores casos, favoreceram a exportação;
- todos os países de industrialização “tardia” foram também exportadores tardios de manufaturas. Os que irromperam mais espetacularmente no mercado internacional teriam escolhido o modelo japonês, enquanto outros teriam seguido o modelo americano (Capítulo 7, e pp.188-9); a influência do modelo japonês é enfatizada e recomendada; (p. 290)
- não está clara a existência de um padrão comum no “resto” no que se refere ao tipo de firma, grande ou pequena, propriedade nacional ou estrangeira, estatal ou privada, mas, nesse caso, Amsden faz uma generalização surpreendente: “quanto menor a desigualdade da distribuição de renda no país, tanto maior o esforço coordenado para criar empresas nacionais líderes e para investir em ativos baseados no conhecimento, em inovação, em pesquisa e desenvolvimento”. …
O último capítulo é de considerações teóricas, em que repassa seus argumentos em favor da intervenção estatal, porque é preciso fazer com que os preços se tornem “errados”, por que não é possível deixar que eles igualem o custo marginal, e por que considera inválido o argumento das “falhas de governo”. O “resto” teria criado instituições que atenuaram os malefícios da intervenção de governo, da corrupção ao risco comportamental. Mas, devido ao aumento do custo de subsidiar, sua previsão é de que quanto mais tardia a industrialização, tanto mais importante será o papel da firma estrangeira. … É, ainda, onde encontra uma saída fácil e pouco convincente para ignorar políticas macroeconômicas: políticas relativas a poupança, taxa de câmbio, orçamento e oferta monetária não teriam importância no horizonte de tempo do livro, que é o muito longo prazo. (p.288-9) Apesar de tanta comparação, ninguém se atreve, por enquanto, a explicar por que foi no “modelo de desenvolvimento latino-americano”, e não na Ásia (exceto no Vietnam num ano de transição), que surgiram as hiperinflações.
A busca de dados empíricos e o processamento de grande quantidade de informação são típicos dos seus estudos. Mas apesar da grande quantidade de dados e percepções úteis, o que fica de fora é tão importante para entender as experiências históricas examinadas quanto o que foi incluído. O contexto externo de cada exercício de política industrial quase não figura no estudo; mesmo as crises de balança de pagamentos da América Latina em 1982 e do Leste Asiático em 1997 são atribuídas, ambas, sem diferenciação, a uma “expansão excessiva” devido à redução dos controles do “estado desenvolvimentista” sobre a expansão da capacidade instalada e do crédito; só China, Índia e Taiwan teriam escapado de crises financeiras, por serem mais estatistas (p.254).
Fatores políticos mais amplos são ignorados (exceto quando atribui a abertura do mercado de capitais e do comércio exterior à pressão de lobistas e da política externa americanas, no Capítulo 9). Política macroeconômica se menciona en passant, como recomendação do FMI à Turquia (p.256). A palavra inflação sequer aparece no livro. Stricto sensu, não trata de políticas de desenvolvimento em seu conjunto, e sim, de uma parte delas, relativas a setores industriais, estratégias empresariais e tecnologia.
A revista Scientific American, que instituiu em 2002 um prêmio (The Scientific American 50 Award) concedido a 50 indivíduos, equipes, companhias ou outras organizações para “a celebração anual dos visionários do mundo da pesquisa, da indústria e da política, cujas realizações recentes indicam um futuro tecnológico melhor para todos”, concedeu a Alice Amsden, que é professora de economia política do MIT (Massachusetts Institute of Technology), o prêmio na categoria “Indústria Manufatureira”, porque “identificou estratégias de desenvolvimento econômico que poderiam ter valor especial para países não-ocidentais em ascensão” (grifo meu). Scientific American pediu a cada premiado, indivíduo ou corporação, que dessem numa frase a sua “visão”. Na chamada para Alice Amsden aparece: “Visão: Políticas econômicas do tipo ‘tamanho único’ (one-size-fits-all economic policies) são inadequadas para países pobres que querem tornar-se industrializados.” Impossível não concordar com essa afirmação. … O problema é que agora este chavão é usado também para insinuar que o desenvolvimento econômico é abortado por políticas elementares para manter o equilíbrio macroeconômico, essas sim necessárias em qualquer país como condição (mesmo que insuficiente) para o crescimento econômico sustentado.
Lembro-me do ano (1989) em que Alice Amsden começou a dar aula na New School for Social Research em Nova York. Durante alguns dias, a New School estampou meia página de propaganda no The New York Times anunciando sua nova conquista educacional em grandes letras “Alice in Wonderland!” (sic), agregando, se bem me lembro, duas ou três linhas do seu imponente curriculum vitae. Ao perder-me ora na profusão ora na falta dos dados que têm que ser processados para as comparações que faz, não consegui abrandar minha dúvida: será que a comparação de aspectos isolados resiste quando esses dados são devolvidos ao contexto histórico de cada país e se consideram os trade-offs inevitáveis em cada contexto histórico? E será que Alice está no país das maravilhas, como no anúncio do The New York Times, e acredita mesmo que basta um governo querer e ele pode repetir a história?” [fim da resenha]
Traduzo a resposta de Amsden, no email de [email protected] em 15/05/2003. “Assunto: você é muito gentil!
Minha querida,
Muito obrigada pela sua maravilhosa resenha do meu livro. Li da maneira que pude e pareceu muito inteligente e ampla. Realmente capturou meu argumento. Aí um homem brasileiro a leu e disse “ela ainda é sua amiga!”
Cuide-se, e muito, muito obrigada. A resenha deve ter sido um trabalhão (como escrever o livro!!!). Gentilmente, Alice.”
Claro que fiquei matutando: esse “homem brasileiro” estava espantado com quem? Ela não podia ser amiga de alguém que escrevia uma resenha daquelas? Comparar o trabalho da resenha com o do livro é bizarro: seria sua maneira de reclamar? Fato é que nossa correspondência continou, até 2008, e tivemos outras discussões pelo caminho. Lembro que quando ela passou por São Paulo em maio de 2002, fui à sua palestra sobre “Indústria de software Brasil/China/India”, e reclamei que ficar só um dia em São Paulo não era correto para quem queria recomendar política econômica no Brasil.
Em maio de 2008, Alice mandou um email informando que a Aula Magna do começo do ano letivo no MIT seria dada pelo Prof. Mohammad Yunus. Como sabido, Yunus e seu Grameen Bank receberam o Prêmio Nobel da Paz em 2006 e se tornaram celebridade mundial nos anos seguintes. A discussão com Amsden sobre as ideias do Prof. Yunus e o micro-crédito já não foi gentil, já tinha estilhaços da troca sobre seu último livro, de 2007, “Escape from Empire” (The MIT Press, 2007). Enviei a ela a crítica de um economista importante do Bangladesh, Mahfuzur Rahman, sobre os absurdos que Yunus dissera sobre economia e o impacto mínimo do microcrédito no Bangladesh, fora que paz, no rescaldo da invasão do Iraque, exigia intervenção mais direta. Primeiro Amsden tentou desqualificar o bengali, depois concordou quanto a Yunus, mas que o MIT não estava honrando Yunus, e sim, a honra era a ela, a autora do livro “Escape from Empire” que seria entregue autografado a Yunus na solenidade (“the book that you despised” – acrescentou).
O que eu havia dito, com base no que me escreveu e da apresentação pré-publicação, era que aquela generalização sobre dois períodos imperiais dos Estados Unidos nas relações com os países em desenvolvimento não tinha fundamento, era um esquema retórico que não tinha apoio em fatos. Alice Amsden ficou indignada, invocou a autoridade do MIT, que “fact finders” do MIT haviam fiscalizado o texto e não encontrou retórica. Antes disso nunca soube que existia essa profissão de “fiscal de fatos”, creio que eram os editores da MIT Press. Meus fatos eram diferentes, lembrei a ela os golpes na América Latina antes dos 1980s.
Ela queria uma frase de José Serra na capa do livro, até ajudei no contato, cheguei a informar Serra pessoalmente, mas o então Governador do Estado e candidato presidencial, não respondeu. Na carta a Serra, Amsden repetiu que “fact finders” do MIT haviam checado tudo e assim não havia nada comprometedor! Havia sido criado o BRICs (que ela queria BRICKs com a inclusão de “Korea”) e por isso insistia em alguém do Brasil. Acabou tendo na capa o apoio de Luiz Carlos Bresser-Pereira para a ficção das duas etapas da dominação “imperial” americana.
Nos “Agradecimentos” iniciais de “Escape from Empire”, Alice observou que os debates sobre “política externa econômica americana” “usualmente acabam em fúria”. Apesar de tudo, estou na lista de 30 e tantas pessoas a quem agradece porque “tiveram coisas interessantes a dizer em múltplas direções”.
Uma discussão desse “Escape from Empire” (e seu subtítulo igualmente alegórico “A Jornada do Mundo em Desenvolvimento pelo Céu e pelo Inferno”) não cabe aqui. Onze capítulos com títulos alegóricos são uma façanha literária, contra o seu imaginado Golias imperial, o chamado “Consenso de Washington”. Depois de tudo o que aprendemos sobre inflação e sobre a relação entre o curto e o longo prazo, o livro já nasceu datado. Como disse uma vez Pedro Malan, a discussão de política macroeconômica teria sido mais tranquila se John Williamson, excelente professor e nada “imperial”, o “pai do Consenso de Washington”, tivesse chamado sua lista de Consenso de Uagadugu. Fosse esse o nome, a alegoria de Amsden nem teria sido possivel.
Quando Alice Amsden se destacou com seu estudo sobre Coreia, as “celebridades” eram os “tigres asiáticos”. Creio que foi Roberto Macedo quem primeiro usou o termo “países baleia” para os grandalhões que não seriam tão ágeis. Será? Pois em 1991 o PIB da China era 2,4% do PIB mundial, hoje é quase 19%; a India era 1,5% do PIB mundial, hoje é mais de 9%. China e India caminham para representarem juntas 1/3 da economia mundial. E o Brasil? Algo se moveu nesses 30 anos, devagar: em 1991 era 1,7% do PIB mudial, hoje é 2,5%. Aguardemos a “neoindustrialização”. O Brasil “aprenderá a competir”?
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