Compreende-se facilmente a famosa e metafórica frase de Auguste Comte: “Os mortos governam os vivos”. Um pouco mais complexo e estimulante é adentrar num campo onde alguns pensadores e antropólogos contemporâneos vêm trabalhando e que, por si só (e não podia ser diferente), é o entrecruzar-se de vários outros campos. Este é o caso da filósofa belga Vinciane Despret, que se apresenta não menos instigante na sua obra “Um brinde aos mortos: histórias daqueles que ficam”, lançada há meia dúzia de anos e que, agora em 2023, passa a contar com uma edição brasileira.

A própria Despret nos sinaliza de que anda na contramão do que se  chama socialmente “fazer o luto”. Também, é claro, não se trata de prolongar o luto, mas de, por assim dizer, abrir ou dar um novo espaço ontológico aos mortos. Com razão, lembra a filósofa, que “[…] a ideia de que os mortos não têm outro destino mais que a inexistência demonstra uma concepção de seu status muito local e historicamente muito recente”. E foi justamente o citado Auguste Comte que ajudou a consolidá-la em materialismo científico. Mas tal se trata de uma concepção globalmente minoritária. As “histórias dos que ficam”, colhidas em várias partes do mundo, dão um testemunho eloquente de que os mortos não estão tão mortos quanto alguns imaginam. Para muitas pessoas, de forma ostensiva ou discreta, por meio de sinais, sonhos, ocorrências significativas, etc., há uma conversa que se prolonga e que sempre dá aos vivos “um sentimento de presença” dos que se foram. Para embasar seus passos, invocando Bruno Latour e Étienne Souriau, Despret argumenta que há vários modos de existência e que a mesma “maneira de ser” não se aplica a todos os seres. Por isso, no caso dos mortos, há modos especiais de se dirigir a eles.

Para Despret, “[…] os mortos convertem os que ficam em fabricantes de relatos, de histórias” e com isso insuflam vida, pois então “tudo se põe em movimento”. Dentre os vários casos evocados pela filósofa, há o de uma amiga que, em suas viagens, leva o sapato da avó para que esta continue a percorrer o mundo; outro que lembra uma viúva que leva as cinzas do marido em suas trilhas pelas montanhas para com ele compartilhar belos amanheceres; outro ainda fala do viúvo que, no dia do aniversário da finada esposa, sempre prepara seu prato preferido; e há também o caso de uma jovem grávida que, na véspera da sua primeira ultrassonografia, escuta o pai morto lhe dizer em sonho que estava feliz pois seria avô de um menino, o que de fato veio a ocorrer. Enfim, como diz a autora, os mortos estão entre nós e quase nunca de forma inerte, mas influindo, transmitindo, mobilizando: “Os mortos são formidáveis indutores de vitalidade. Sem eles, muitos dos que estão sob sua proteção estariam menos vivos”. Com certeza, jamais Auguste Comte imaginaria que sua famosa frase praticamente fosse tomada à letra. Por outro prisma, vemos que filósofos e especialistas como Despret vêm demonstrar que, no sonho da filosofia (agora irmanada à antropologia), como antevia Shakespeare, há mais coisas a se descobrir entre o céu e a terra.

Um ponto abordado por Despret toca especialmente a vida moderna: a doação (ou extração) de órgãos, os chamados “transplantes”. Estes terminam por operar uma transformação existencial nos que recebem os órgãos. Há casos, como se sabe, de que apenas um morto (geralmente jovem) salva, de uma só vez, com seus diversos órgãos, a vida de várias pessoas. Mas é de se notar que “[…] o órgão tanto prolonga a vida dos que recebem quanto a vida das pessoas falecidas […]”. Doravante, vidas que estarão profundamente ligadas entre si, chegando a haver casos em que transplantados de coração mudam de gostos e passam a sonhar com lembranças que não são suas…

Eis, em suma, o campo interdisciplinar em que avança Vinciane Despret, que, de resto, não está sozinha em seus estudos e que, a seu modo, também ecoa a inquietação hamletiana sobre ser ou não ser… Por outro lado, como ela sugere, nem Comte, nem a eletricidade, nem o materialismo ocidental conseguiram de fato matar definitivamente os mortos; de certo modo (eis o mistério ou, se quiserem, o desafio ontológico), eles estão entre nós, nesta  nossa vida de “aquém-túmulo”, como diria Guimarães Rosa.