Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgo, escreveu certa vez que ninguém mais morto do que “o homem de bem”: podíamos vê-lo estirado num caixão com algodão nas narinas. Nelson sempre subia a detalhes crus e sórdidos para enfatizar, em imagens vivas e irônicas, o desaparecimento real de muitos valores de nosso tempo.
É com esse breve prólogo rodriguiano que quero falar de outro valor que, faz algum tempo, tornou-se morto e sepultado, senão cremado nas novas chamas do comportamento e das relações humanas. Refiro-me à discrição, que está superlativamente morta em nossa paisagem humana. Não, não sou saudosista, mas tenho saudade da finada discrição.
A velha e boa discrição tinha uma inata juventude eterna. Vivia recolhida, fugindo das ênfases, refugiada em pressupostos que passaram de moda. Postava-se um tanto diáfana, incapaz de um grito, de uma frase esnobe, de qualquer palavra ou gesto inconveniente. Ao contrário dos advogados, não possuía causas nem loquacidade. Um exagerado malicioso diria que ela nunca foi um valor pátrio. Todos os discretos do Brasil sempre foram empurrados para as margens. O único que ficou bem nas margens, as do Riacho Ipiranga, foi Dom Pedro I, que, de resto, precisou dar um grito para proclamar a Independência.
Embora pareça, a discrição nunca foi tímida, sempre foi, por natureza, contida. Chamar a atenção sempre lhe pareceu uma perda de tempo, desfiguraria sua beleza. De todos os grupos que compõem o Brasil, talvez só o dos mineiros seja discreto, o que é um tema para debate. Afinal de contas, Minas aprecia o silêncio de vales e montanhas e sofreu como poucos a discreta sangria de seus tesouros. Como quer que seja, por livre vontade ou imposto destino, a discrição sempre viveu centrada em si mesma.
Já no plano das nações, como sabemos, a terra da discrição é, por excelência, a Inglaterra. Talvez por isso, coitadinha, seja ilhada! Em seu livro “Os ingleses”, os historiadores Peter Burke e Maria Lúcia Pallares-Burke ilustram essa característica com dois pitorescos exemplos. O primeiro fala de um jovem que fora convidado a uma festa à fantasia. Ao chegar no local, fantasiado de bobo da corte, estranha que a casa não esteja bem iluminada, etc., mas é muito bem recebido pelos anfitriões, que, aliás não, estavam fantasiados. A conversa foi tão agradável e durou tanto que o jovem esqueceu de que era o único convidado presente. Ao se despedir, narram os Burke, o anfitrião lhe diz: “Foi muito bom vê-lo hoje, mas não se esqueça de voltar daqui a uma semana: na próxima segunda, vamos dar uma festa à fantasia”.
O outro caso contado pelos Burke é o de uma amiga brasileira que, uma vez em Cambridge, caminhando por uma rua da cidade, depara-se com um corredor de livros que começava junto à entrada de uma pequena casa. Nossa patrícia pensava tratar-se de um sebo. No fim do corredor, numa saleta, observou que uma criança e uma jovem olhavam para ela bem intrigados. A ficha começou a cair: voltou-se para o “vendedor” e perguntou se ali era uma livraria. Ato contínuo, ouviu a mais tranquila resposta: “Não, aqui é minha casa”.
Marcada para morrer num tempo de estrondos, redundâncias e inconveniências a granel, a discrição sempre teve qualquer coisa que se avizinha da ausência, como bem o anotou o poeta Carlos Drummond de Andrade: “[…] para a virtude da discrição […] aparecer em seu fulgor, é necessário que faltemos à sua prática”. Viu, o poeta, a irônica complexidade da criatura. Num tempo inimigo do silêncio e amigo do mais gordo narcisismo, como poderia viver bem a modesta e elegante discrição?
Enfim, a transparente e reservada criatura entrou para o rol das anomalias comportamentais. Vieram, por fim, as redes sociais: foi a última pá de cal, tornou a cova mais funda. Agora, todos estão no palco, embora com resultados muito diferentes. Todos chamam a atenção para si mesmos, a maioria de um modo gritante e espalhafatoso. Estamos nos antípodas da discrição. Tagarela-se até o infinito, e o resultado, salvo raras exceções, é desolador. Sem discrição, não há elegância nem sabedoria possíveis, muito menos uma saudável vida social; sem ela, não há modéstia nem serenidade; resta apenas uma espécie de esnobismo do nada no “feed” que roda sem parar…
Ao que parece, uma vez defunta, carne dada aos vermes, a discrição faz agora companhia ao citado “homem de bem” em seu fúnebre e discreto caixão. Ah, me permitam terminar dizendo com ênfase rodriguiana: esse tal “homem de bem” nunca passou de um grandissíssimo… discreto.
Maravilhoso, meu amigo querido!