Um bom filme? Na comparação com a safra dos tais “blockbusters” aqui no cinema do bairro, o filme é dos que vale ver. Mas não saberia argumentar que o filme é “bom”. Está em cartaz no Brasil há três semanas, e é sucesso de bilheteria. Tem causado imensa polêmica, mais ainda nos Estados Unidos. Fui ver por proposta de quem notou que Pedro Doria teria dito que é filme que “dá o que pensar”. Tem razão Pedro Doria (cuja resenha do filme não consegui encontrar). Durante a projeção me encolhi por vezes de tanto horror. Num dos flashes Gaza me veio à mente, que sou espectador que capta, mesmo sem querer, alguma referência política lato sensu, qualquer que seja o filme. Mas não, não é a Gaza nem a Ucrânia que o filme remete, não aparece gente morrendo de fome ou de frio.
Ao fim da sessão restou-me a impressão resumida de que é filme em defesa e homenagem de jornalistas. E o impacto de violência excessiva, extrema, ficcional, impossível existir aquilo, e mais impossível ainda aquilo ser fotografado. Violência exagerada! com uso de efeitos especiais! declarei saindo do cinema. A amiga retrucou: “guerra é guerra”. Só que o filme não é documentário, é ficção, sobre uma hipotética guerra entre agrupamentos de estados nos Estados Unidos, em algum futuro, ainda que fique insinuado, pelas imagens dos prédios e paisagens americanas, que esse futuro não é muito remoto.
Alex Garland, o britânico diretor e roteirista, escreveu o filme em 2020, mas reconheceu, provocado por jornalistas, que “Guerra Civil” ganhou em conotação depois da violenta invasão do Capitólio de 6 de janeiro de 2021. Sobretudo por suas cenas finais nas ruas de Washington. Curiosamente, boa parte do público e da crítica dizem que o filme é apolítico. Wagner Moura (que faz Joel, um dos jornalistas) declarou que o filme é “nem de esquerda, nem de direita”. Eu não decifrei de imediato mensagem alguma ao ver o filme, exceto guerra como espetáculo produzido com tecnologia de ponta e, como já disse, alguma empatia com os jornalistas. A tremenda polêmica que está causando só fui ver depois.
Não sei como se pode considerar o filme apolítico. O “apolítico” não existe, ainda que às vezes não se consiga, individualmente, decifrar a mensagem de um filme ou outra obra de arte. É verdade, como ressaltou Garland, que no filme as duas partes nessa guerra do futuro não são identificadas como democratas e conservadores do sistema partidário americano. Diretor e o elenco enfatizaram a postura apartidária nas entrevistas de apresentação do filme. Há críticos que denunciam o filme exatamente por isso: transforma todo espectador, sem partido, em cúmplice e consumidor passivo da violência.
O cenário do filme são os Estados Unidos, mas o enredo não chega a levar a uma identificação clara com qualquer das duas partes em guerra. O Presidente em Washington (o do filme) aparece só no comecinho, parece até que está fazendo um teste com fonoaudiólogo, treinando tom e dicção de algum discurso a ser feito. Não chegamos a ver mais que isso, que é um Presidente mais preocupado com a aparência dele mesmo que com o conteúdo do discurso. Das notícias que os jornalistas recebem da Washington ficcional, não se sabe bem o que está acontecendo e por isso mesmo o jornalista Joel (o personagem que é de Wagner Moura) e a lendária fotógrafa de guerra Lee decidem ir lá entrevistar o Presidente antes que o derrubem.
A matança e o terror vêm dos dois lados. Nesse sentido o filme é apartidário. Nas entrevistas sobre o filme Garland tem dito que “dois lados” têm que dialogar. Pretende ser um filme de guerra contra a guerra. Mas será que sobra realmente a mensagem antiguerra? Há quem questione a existência dessa mensagem. Houve de fato quem visse o contrário, uma incitação à violência. Ou uma banalização da violência repetida que nos tornaria insensíveis, tornaria inútil a exposição. Como parece reconhecer a fotógrafa Lee quando conversa com Sammy, o velho colega, na cena em que conta como, cada vez que fotografara zonas de guerra, pensou que estava enviando, com suas fotos, uma mensagem de alerta, “não façam isso”, e, no entanto, “aqui estamos de novo”, de nada adiantou.
O filme é contado da perspectiva de quatro jornalistas: Lee, cansada e endurecida de tanto fotografar guerras passadas, o velho Sammy experiente e sensato (mesmo porque já não consegue correr), Joel o repórter cheio de adrenalina e entusiasmo pela profissão, e Josse, jovem promissora que idolatra Lee e só quer ser como ela. A identificação se dá com os jornalistas estrelas do filme, que têm uma atuação esplêndida. Mas estes tampouco aparecem com uma posição definida, exceto querer obter o furo jornalístico de chegar ao Presidente. Só é nítido o espanto deles, quando, no meio da arriscada viagem param em uma fazenda e encontram soldados paramentados e sem identificação atirando para uma das casas. Quando Joel pergunta por que estão atirando, a resposta é “alguém está tentando nos matar, estamos tentando mata-los”. O jornalista incrédulo só constata que o atirador não sabe de que lado na guerra está aquele que está tratando de matar.
Há os que assim resumem o filme como sendo antiguerra, onde a violência de qualquer lado não tem sentido e continua sem poder parar, realimentada por si mesmo. Consideram que o filme é um alerta para os Estados Unidos – e para muitos outros países – contra a polarização. É possível entender o filme deliberadamente isento de identificações políticas, consideradas desnecessárias pois, segundo Britt Hayes, “bastaria olhar ao redor para ter a ideia de uma América distópica em que divisões políticas abriram caminho para conflito violento”. Essa ensaísta escolhe o título “Se Você Quer Saber Porque Há Uma Guerra Civil em “Guerra Civil”, Você Não Está Entendendo” (themarysue.com/why-is-there-a-civil-war-in-civil-war-missing-the-point/) e prossegue explicando que não se pode buscar uma justificação porque ela não existe: a guerra é simplesmente horrível (“fucking horrible” é o que está no original) e deveria ser evitada. Paradoxalmente, conclui do filme que se deve enfrentar com o debate as ideias diferentes das nossas, pois elas não desaparecem se as ignoramos, e que a essência da polarização vem de se evitar o debate.
Será? Será que os espectadores de “Guerra Civil” vão sair da sala de projeção dispostos ao diálogo, transformados em partidários da paz e conciliação, contra a polarização? Um dos críticos mais cáusticos, Marcelo Hessel, professor da matéria “Roteiro” no Instituto de Cinema, descreveu “Guerra Civil” como um “filme de estrada” (“road movie”), pois que leva os personagens de um ponto de partida, Nova York, a um ponto de chegada, Washington, mas sugere que Garland está entre “narradores que embarcam numa história sem saber onde querem chegar”. (omelete.com.br/filmes/criticas/guerra-civil-filme-critica)
Há condenações ainda mais severas. Joseph Holmes, um crítico de cultura baseado em Nova York, considerou o filme superficial, “seu retrato horrível da guerra se sente mais como uma romantização em vez de um alerta contra o que há de pior nos humanos”. Depois de uma análise detalhada, um tanto exaltada, finaliza com uma condenação duríssima: “Na medida em que ‘Guerra Civil’ encoraja fantasias de violência que podem minar uma sociedade em que problemas são enfrentados com conversa, fé, arte, e votação, torna o mundo um lugar pior.” Aí também já é exagero! Tanto exagero quanto imagens de guerra de alta tecnologia de efeitos especiais quase de “sci-fi”. (rlo.acton.org/archives/125489-civil-war-a-shallow-and-dangerous-fantasy.html)
Ao fim e ao cabo, não consegui rastrear com precisão a mensagem do filme. Tem bastante gente indo ver. É filme de orçamento médio, de uns 50 milhões de dólares, e em algo como dois meses a receita de bilheteria já chegou a mais que o dobro disso, no mundo todo. O diretor Alex Garland, quando chegou a protestar porque gente demais considerou seu filme apolítico, alegou que não se trata de filme didático, não pretende dar explicação, que cada espectador ligará os pontos à sua maneira. Quem for ver o filme, que conte como ligou os pontos.
comentários recentes