Dorival Caymmi – autor não identificado

Dorival Caymmi – autor não identificado

Balzac escreveu que “O gênio tem isso de belo, que se parece com todos e ninguém se parece com ele”. Dorival Caymmi (1914–2008) é um gênio brasileiro que faz jus às palavras do grande romancista francês. A diretora paulistana Daniela Broitman foi extremamente feliz em realizar o documentário “Caymmi, um homem de afetos”, para o sucesso do qual contribui não só a sensibilidade da cineasta, mas quase que naturalmente a própria figura do compositor e intérprete baiano. 

Ao lado da fotografia e da sonoplastia do filme, destaco a frequência do close no rosto de Caymmi tal se a câmera desejasse investigar sua alma e não quisesse perder qualquer detalhe revelador. O rosto do artista é extremamente expressivo. Seus olhos têm uma mobilidade toda própria. Sua morenidade afro-brasileira é visceral. As faces têm um brilho que acompanham o não menos brilhante e amplo sorriso. Caymmi é teatral no bom sentido da palavra, e o filme ainda revela como era bem-humorado. Os “afetos” de que fala o título estão por toda parte: em seus gestos, em sua fisionomia, na expressão sorridente e despreocupada, na convivência amorosa com os amigos. Caymmi é carismático, parece saber disso, e Broitman, em sua direção, tira dessa característica essencial o próprio sumo de seu trabalho.

Caymmi chegou aos ouvidos da minha geração como talvez tenham chegado os primeiros cantos de ninar: na primeira infância, sem nos darmos conta. Aliás, algumas de suas canções se prestam a adormecer as crianças. Elas lembram sombra, água fresca e uma sensorialidade repousante que nos une ao mundo. Eu mesmo, ainda que desentoado e sem jeito, muitas vezes cantei para os meus filhos ainda bebês trechos destas obras-primas que são a “Suíte dos Pescadores” e “Saudade da Bahia”. Nessas composições, como em várias igualmente antológicas, sente-se a simplicidade do gênio que se parece com toda a gente e que, como dizia Proust, torna-se um “espelho refletor” da realidade. Todavia, como sugere Balzac nas palavras do primeiro parágrafo, tanto mais forte o artista, tanto mais ele é inimitável. No documentário, é comentado de passagem que Caymmi não gostava muito da interpretação que davam a suas músicas: nada surpreendente. Nesse ponto lembra o poeta pernambucano Ascenso Ferreira: era de fato o seu melhor intérprete.

Mudando o foco, é com prazer que vemos Caetano e Gilberto Gil falando sobre o conterrâneo, pontuando considerações de quem nele vê um mestre e um ancestral comum. Não menor prazer nos dão as cenas em que confraterniza com Tom Jobim (outro gênio da raça!), assim como as palavras mais “biográficas” dos filhos Dori, Nana e Danilo, pelos quais ficamos sabendo um pouco da vida privada do compositor.

Caymmi é um amoroso do mar, e ele próprio um  amoroso mar. Um mar sensual (A gravadora Odeon lançou, em 1995, “Caymmi: amor e mar”, com 8 CDs com todas as composições lançadas pelo seu selo). O antropólogo Antonio Risério, autor do ensaio “Caymmi: uma utopia de lugar”, além de se deter no Caymmi praieiro, nos chama a atenção para a grande sensualidade do artista baiano, registrando que “[…] ele tem um prazer imenso em olhar o corpo das mulheres. Em contemplar a atividade corporal, o erotismo muscular das fêmeas. É o tipo do sujeito encantado”. E relembra os casos de “Dora”, “a rainha cafuza do frevo e do maracatu” (no Recife, há quem aponte a inspiradora da letra), e da não menos sensual e estimulante “A vizinha do lado”. Ele “[…] celebra, diz Risério com propriedade, continuamente o movimento dos quadris, essa ginga feminina a meio caminho entre o andar e a dança”. Caymmi assinaria com prazer esta quadra do pernambucano Austro-Costa (1899–1953): “As tuas formas redondas / Vão pela praia a ondular. / Eu prefiro as tuas ondas / Às ondas todas do mar”…

Dispensável dizer que Caymmi criou versos belos, por vezes inusitados, e de uma superior delicadeza. Sua sensibilidade soube extrair de nosso povo os meneios fonéticos e prosódicos da língua portuguesa do Brasil, os sons amados por nossos ouvidos. Não se trata apenas de beleza, mas de inteligência estética. No filme, sua cozinheira relembra que ele não gostava de barulho; é que precisava do silêncio para encontrar as melodias mais suaves e perfeitas. Molhava-se de mar e de sonho, mas trabalhava com ardor e dedicação como um daqueles suados pescadores que tão bem soube pintar. Sua voz parecia vir das profundezas da Terra ou do imemorial oceano e  soube, como poucas, “chamar o vento” a nosso favor. A favor do Brasil.

O já incontornável e recém-lançado documentário de Daniela Broitman, que recomendo vivamente, deveria ser exibido em todas as escolas e universidades, não porque se pretenda pedagógico, nada disso, mas porque nos lembra que, em face da grosseria dos novos fascismos, temos uma arte, imensa e nossa, que celebra a vida, o lirismo e a gentileza, não a morte e a violência. “Vamos chamar o vento” pra ele espalhar, cada vez mais, a música genial de Dorival Caymmi