Old hands -Wikimedia Commons by Sharada Prasad CS

Old hands -Wikimedia Commons by Sharada Prasad CS

Cícero (106–43 a. C.), político, orador, pensador e grande advogado romano, observou, logo no início de seu livro sobre a velhice: “Todos os homens desejam alcançá-la, mas, ao ficarem velhos, se lamentam”. Uma outra tradução é mais contundente: “Todos desejam a velhice, mas, ao nela chegarem, acusam-na”. Jonathan Swift, que nos fez viajar com Gulliver, diz algo parecido: “Todo mundo quer viver muito tempo, mas ninguém quer ficar velho”. Bem, não chegando “a indesejada das gentes”, fica-se velho, querendo-se ou não. Cícero faz sua ponderação entre as primeiras palavras de sua obra, deixando claro que dialogará com uma opinião corrente à época, expressa por uma tremenda  hipérbole: a velhice, dizia-se, era “[…] mais pesada de suportar do que o Etna!”. Ou seja, nada menos que a maior montanha da Itália!

O mês de junho, que poderia ser pintado com o amarelo, o laranja e o vermelho das fogueiras juninas, tornou-se, ainda bem, “Junho Violeta”, pois seu dia 15 foi escolhido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa. Este é o Etna da atualidade: a violência contra o idoso! Uma violência, além de tudo, covarde. Consta que, até agora, nestes seis primeiros meses de 2024, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania recebeu 74.620 denúncias de violência contra a pessoa idosa. Um número colossal que faria Cícero estremecer de horror em sua charmosa vila romana. 

O mencionado ministério lançou este mês uma campanha com um slogan, a meu ver de um pálido violeta, que diz: “Respeito não tem prazo de validade”. A iniciativa é boa, o respeito idem, mas é preciso muito mais para um país tão socialmente  desigual quanto o Brasil, cuja população de idosos já chega hoje a 32 milhões. Logo, o violeta deve ser uma cor lembrada todos os dias se quisermos pintar a velhice com respeito e consideração.

Garantida pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Pessoa Idosa, a dignidade dos idosos nacionais requer um esforço prático de toda a sociedade. É no cotidiano vivo, existencial, rotineiro, que os direitos dessa vasta categoria têm que ser levados em conta, isto é, ser de fato exercidos. Não custa lembrar que, em civilizações antigas, como bem o testemunham a Bíblia e tantos outros repositórios de História e sabedoria, o idoso tinha vez e voz. Também nas sociedades orais o ancião era respeitado por sua memória e seu conhecimento: era um livro que se folheava com respeito e carinho, uma fonte de estabilidade social. A velhice, então, não era lugar de esquecimento, mas de memória.  O próprio Cícero nos lembra o caso de Esparta, onde os velhos eram extremamente honrados. Mas o grande romano nada tem de bobo e também sabe que “Os cabelos brancos e as rugas não conferem, por si sós, uma súbita respeitabilidade”…

Em artigo publicado na “Folha de S.Paulo” de 13 do corrente, a antropóloga e especialista no tema Mirian Goldenberg, além de nos lembrar que “A violência contra os mais velhos mora dentro das nossas casas”, uma lamentável e cruel realidade, chama-nos a atenção para os cinco abusos mais comuns contra os velhos, a saber: “Negligência”: deixar de oferecer cuidados básicos (medicamentos, higiene, proteção); “Abandono” (ausência ou omissão de familiares ou responsáveis, inclusive os institucionais); “Violência física”: usada para obrigar o idoso a fazer o que não deseja, ferindo, provocando dor ou até morte); “Violência psicológica ou emocional” (xingamentos, constrangimento, sustos, etc.); e “Violência financeira ou material” (exploração e uso não consentidos de recursos financeiros e patrimoniais).

Eis aí, no parágrafo anterior, não o violeta que conscientiza, nem a violeta que perfuma, nem o fogo que aquece e ilumina, mas a escuridão, a mais completa, do coração humano. Eis a ponta do iceberg, da imensa geleira que congela e isola os idosos, flagelando-os antes da morte. Enfim, uma solidão imoral num apagar de luzes que não deixa espaço a qualquer cor. Não se trata de “prazo de validade”, como num rótulo de mercadoria ou como quer a brincadeira etarista do momento, na qual, às avessas, parece ter se inspirado o citado ministério. Não se trata de “prazo”. Trata-se de inclusão e de humanidade. Inclusão existencial. E isso será tanto mais desejável quanto mais a vida se torne longeva, como de fato, graças à tecnologia, vem ocorrendo. Tomara chegue aos idosos não a ênfase do violeta ou de qualquer outra cor, não só um mês ou um dia, mas todos os dias, oxalá chegue a luz que falta à solidão, sobretudo àquela dos que são vítimas das piores misérias morais e sociais.