Torre de Babel by Marten van Valckenborch  (1535–1612)

Torre de Babel by Marten van Valckenborch  (1535–1612)

O folclore literário em torno de Guimarães Rosa é divertido. Uma das anedotas conta que, desejando uma vaga de emprego, um candidato saiu-se com esta na entrevista com o possível contratante: “Falo várias línguas, inclusive a língua de Guimarães Rosa!”. De fato, não estava muito longe da verdade, pois o genial Rosa, segundo alguns linguistas, criou um verdadeiro idioleto literário. Como se sabe, foi a facilidade para falar e aprender outras línguas (dominava, ao menos, uma dezena de idiomas) que levou o médico Guimarães Rosa a entrar na carreira diplomática. O diplomata aposentou o jovem médico de roça, que vivia se estressando com os quefazeres da profissão. 

Outro grande e conhecido poliglota foi Paulo Rónai (1907–1992), tão importante crítico literário (inclusive tem páginas memoráveis sobre o citado Rosa) quanto notável tradutor. Dentre suas obras, esse húngaro que adotou o Brasil escreveu o “Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações”, cuja primeira edição saiu em 1985, quando por aqui eram ainda raros livros desse tipo. Ali não encontramos mais que a rubrica “poliglotismo”, que pitorescamente só nos remete à conhecida passagem da “Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios”: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine […] se não tiver amor, nada serei”.

Egresso do universo cultural europeu, Rónai nos diz, sem o querer, que há um vazio literário sobre o tema, o que, de certa forma, explica-se: a Europa é naturalmente multilíngue. Aliás, como referem vários especialistas, a humanidade é predominantemente multilíngue. No Brasil, o Marquês de Pombal (1699–1782) apagou, com seu despotismo esclarecido, o nosso nativo poliglotismo, impôs o português, o que, aliás, frequentemente vem se ocultando nas nossas escolas… 

Ao que parece, o poliglotismo, entre nós, tornou-se um signo de uma inteligência “superior”. Nada mais tolo, senão tolíssimo. Certa feita, ouvi de um popular que Ruy Barbosa era tão inteligente que sabia todas as línguas do mundo. O grande Ruy, visto por Oswald de Andrade, não passava de “uma cartola na Senegâmbia”…  Mas o título de maior poliglota de todos os tempos fica mesmo com o cardeal Gaspare Mezzofanti (1774–1849), natural de Bolonha. É o que nos garante Rónai em seu biográfico livro “Como aprendi o português e outras aventuras”. Há testemunhos de que, no início da velhice, o bom sacerdote dominava plenamente 78 línguas, lendo, escrevendo, falando e, provavelmente, até rezando…

Peter Burke, em seu livro “Linguagens e comunidades nos primórdios da Europa Moderna”, nos mostra como era frequente que governantes, ministros e diplomatas, no início dos tempos modernos, falassem várias línguas europeias, quatro ou cinco línguas, o que, em alguns casos, poderia numericamente se estender. Acadêmicos e letrados não ficavam atrás. Nesse período, registra Burke, “Centenas de gramáticas e dicionários foram produzidos para permitir que os falantes de uma língua aprendessem outra. Alguns eram multilíngues, com destaque para o ‘Calepino’, um dicionário publicado pela primeira vez em 1502, reimpresso regularmente até o fim do século XVIII e ampliado aos poucos, até finalmente incluir onze línguas”. Hoje, com a globalização, a facilidade das viagens e dos intercâmbios internacionais, não é muito diferente.

História ou histórias à parte, causa estranheza a Rede Globo creditar, dentre outras qualificações, a um de seus profissionais de jornalismo o “título” de “poliglota”, como se anunciasse um urso-panda para apresentar o Jornal Nacional. Não, não causa estranheza, se virmos aí a permanência do mito entre nós, brasileiros e pobres monoglotas! Poliglotismo pouco tem de extraordinário, muito menos sapiencial. Enfim, há monoglotas geniais e poliglotas que são  medíocres em várias línguas. 

A propósito, conta-se que apresentaram ao poeta paranaense Emílio de Menezes (1866–1918) um jovem… e “inteligente” poliglota, que, um tanto deslocado, ficou na roda de conversa em que o poeta paranaense pontificava. O rapaz entrou mudo e saiu calado, e o poeta, instado a emitir uma opinião sobre o jovem, sentenciou para surpresa do grupo: “Inteligentíssimo, muito criterioso”; “Mas como? Ele não disse palavra!”, alguém exclamou. Emílio já tinha a resposta na ponta da língua: “Pois, por isso mesmo. Você não acha que é ter talento saber ficar calado em seis línguas diferentes?”.

O diabo, convenhamos, não é ser um “pobre” monoglota, mas ser um monoglota na própria língua, sem desfrutar da diversidade e do potencial expressivo do seu idioma vernáculo. Ou, por outro lado, pouco fazer com o especial conhecimento de várias línguas. Não devemos esquecer que o poliglota Guimarães Rosa soube trazer várias línguas para “dentro” do nosso português, modelando-o e enriquecendo-o. Era, o bom Rosa, um verdadeiro “troglodita”, como disse outro popular quando, pensando nos poliglotas, não lhe veio a palavra certa.