O artigo publicado na edição da semana passada desta Revista – “A bomba fiscal de Lula” – recebeu um comentário crítico de Teresa Sales e, pelo menos, uma crítica de Lula Baltar, enviada diretamente para mim. Os dois levantam vários aspectos interessantes que permitem aprofundar o tema. No referido artigo, analiso a relação entre a política de aumento real do salário-mínimo e os benefícios da Previdência Social e do Benefício da Prestação Continuada, ambos atrelados ao salário-mínimo e, portanto, tendo um aumento real do benefício. A conclusão do artigo é que o governo vai enfrentar um dilema delicado: ou suspende a política de valorização real do salário-mínimo ou desvincula deste os referidos benefícios sociais, sob pena de inviabilizar as metas do Arcabouço Fiscal.
Os comentários partem de uma abordagem mais geral da questão fiscal, evitando entrar na análise da “matemática”, como chama Baltar, assumindo uma posição de princípio diante das desigualdades sociais do Brasil. Assim, reclamam que, normalmente, não são considerados outros componentes das despesas primárias que ameaçam o equilíbrio fiscal, especialmente os “desmedidos e acintosos benefícios que vão desde elevadas remunerações a penduricalhos que atendem poucas e determinadas categorias do setor público”, segundo Baltar. Em outras palavras, existiria uma tendência geral a jogar nas costas dos pobres a responsabilidade pelo equilíbrio das contas públicas.
Embora o comentário de Baltar seja mais geral, devo dizer que, neste artigo, eu não tinha a intenção de propor uma estratégia para o equilíbrio fiscal, procurando alertar para a contradição entre duas decisões do governo com objetivos sociais que se somam para provocar uma aceleração das despesas primárias. Em outros artigos, publicados nesta mesma Revista, formulei críticas à apropriação do Estado brasileiro pelos segmentos privilegiados da sociedade, defendendo a necessidade de uma reforma do Estado, para ser justo e equilibrar as finanças. O artigo intitulado “O futuro perdido” (7 de julho de 2017) dizia que “Estado brasileiro foi sendo capturado e corroído lenta, mas profundamente, por diferentes grupos de interesses e corporações influentes, que chamam de direito os seus privilégios, que hoje comprometem parcelas crescentes dos recursos públicos”.
Em outro artigo – “O país dos privilégios” (4 de março de 2016) – argumento, com base em estudo do IPEA, que “o Estado brasileiro tem sido o principal promotor das desigualdades sociais e da criação de privilégios na sociedade”, incluindo o fato de os salários dos servidores públicos serem, em média, superiores aos do setor privado para cargos similares, especialmente os cargos executivos das estatais. No mesmo artigo lembro a enorme desigualdade entre o INSS e o sistema de previdência dos servidores públicos; estudo de Marcelo Medeiros e Pedro Souza mostra que os funcionários públicos aposentados, que são apenas 4% de todos os beneficiários da previdência, recebem cerca de 20% de tudo que é pago como aposentadoria no Brasil (2016).
Mesmo assim, a bomba fiscal apontada no artigo trata de componentes da despesa pública com uma escala e um peso no orçamento da União muito superior ao que decorre dos privilégios dos estamentos burocráticos do Estado (Baltar não ignora esta enorme diferença no peso da Previdência no orçamento). Embora o fato deva ser abordado com o devido cuidado, pelo seu impacto social, especialmente a Previdência Social representa um elevado percentual do orçamento, e tem uma tendência inercial de crescimento, com o envelhecimento da população brasileira. Com a alavanca do aumento real dos benefícios (acompanhando o salário-mínimo), o próprio sistema de previdência corre o risco de insolvência, e a ampliação da parcela das despesas comprime as outras despesas públicas, incluindo os investimentos sociais.
As críticas ressaltam ainda que não se pode buscar o equilíbrio fiscal apenas pelo lado da redução das despesas, devendo olhar também para a ampliação das receitas, o que, em grande parte, está tentando o ministro Fernando Haddad. Embora a crítica esteja correta, é necessário considerar dois aspectos, um mais geral, referente à carga tributária, e outro, específico do sistema previdenciário. Em relação a este último, tema do meu artigo, é possível aumentar as contribuições dos trabalhadores ativos e das suas empresas (e até dos inativos), mas se trata, em grande parte, de punição aos pobres. A receita da Previdência decorre da contribuição dos trabalhadores ativos, numa solidariedade com os que não mais trabalham. Baltar lembra, com razão, que esta receita pode subir, na medida em que se amplia a formalização do mercado de trabalho. O que, no entanto, depende da dinâmica da economia e da qualificação profissional dos trabalhadores.
Quando se fala de receita, devemos lembrar que o Brasil já tem uma carga tributária muito elevada, próxima de países como a Alemanha, e muito superior à Coreia do Sul, para dar um exemplo de país de desenvolvimento recente, e ao Chile, na América Latina. De modo que a ideia de taxação do mais ricos deve ser considerada não como meio para elevar esta carga tributária já tão elevada, e sim como uma forma de distribuição social mais justa do esforço para a geração da receita pública. Não se trata, portanto, de aumentar a receita total para acompanhar a expansão das despesas primárias.
Concordando com Baltar, trata-se de promover justiça tributária, redistribuindo a carga tributária total numa escala crescente das alíquotas do imposto de renda, de acordo com a elevação do rendimento das pessoas. Me pergunto por que o presidente da República arenga e sugere taxação das grandes fortunas, e não manda um projeto de lei para o Congresso, com uma nova tabela do Imposto de Renda que alivie as rendas mais baixas (ele vive prometendo isentar quem ganha até cinco mil reais), e aumente as alíquotas das rendas mais altas. O Congresso vai rejeitar? Será?
O último ponto dos comentários de Baltar – o custo do serviço da dívida – vai ficar para outro artigo. Por enquanto, devo antecipar que o Brasil não está pagando a dívida, e por uma razão muito simples: não pode pagar, mesmo que quisesse, porque não consegue gerar superávit primário, sobra das despesas primárias que permite destinar ao pagamento de juros e do principal. Mas isso pede outra discussão.
O problema é que não dá para fugir da matemática. Aliás, nem é matemática, é so aritmética: um número menor menos um número maior resulta em um número com sinal negativo. Acontece que deficit fiscal tem efeito inflacionário, e a inflação sempre prejudicou os de renda menor, que têm menos capacidade de se defender da alta de preços, sobretudo se toda a sua renda vai para consumo. Uma transferência de renda que cause inflação simplesmente é comida por esse inflação. As considerções de Sérgio Buarque têm a aritmética correta e tem as preocupações de justiça social mais corretas ainda.