Hitler

Hitler

As células neonazistas têm crescido exponencialmente no Brasil, e seu ódio se volta sobretudo para feministas, judeus, negros e a população LGBTQUIAP+. Um relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos apresentado à ONU, no primeiro semestre deste ano, classifica a situação como “alarmante”.

É tendo como pano de fundo esse cenário, além do rastro que deixou no País a presidência de extrema direita que o governou no quadriênio 2019-2022, que compartilho com os leitores algumas considerações do último livro de Albert Speer (1905–1981), antigo ministro de Hitler para Armamentos e o principal arquiteto do regime. Por vinte anos, após o julgamento de Nuremberg, ao lado de Rudolf Hess, esteve preso na famosa prisão de Spandau. Este artigo foi, por assim, desentranhado da edição francesa de “A imoralidade do poder” (“L’immoralité du pouvoir”, publicado em Paris, em 1981, pela Table Ronde, e inédito no Brasil), obra que, a rigor, é uma longa e densa entrevista concedida a um consagrado jornalista alemão já falecido: Adelbert Reif. De Speer, como se sabe, também foram publicados os diários e a obra “No coração do Terceiro Reich”.

Ao evocar a figura carismática do antigo chefe, Speer reconhece que mais cedo deveria ter percebido aonde tudo aquilo levaria, que se deixou seduzir por um “patriotismo  guerreiro”… Ressalta que o antissemitismo de Hitler estava posto desde a juventude do “Führer” e que, já no poder, este costumava falar da necessidade de se inventar um “inimigo invisível”, no caso, os judeus, um povo que sempre, na visão hitlerista, perturbou as nações desde a Antiguidade. Speer observa que “A privação de direitos e a difamação sistemática dos judeus foram acolhidas pela população alemã tanto com desgosto como com indiferença e com aprovação”. Os campos de concentração eram para muitos algo desconhecido e distante: só poucos sabiam da terrível degradação e do fatídico destino por que passavam os deportados.

Segundo Speer, Hitler dava oralmente as suas principais ordens e primava pelo segredo, governando num contexto de rivalidades bem nutridas. A confiança e a desconfiança conviviam atadas uma à outra no caráter do líder nazista. Muitas vezes, Hitler recuava quando havia um começo de amizade ou maior aproximação. Havia nele uma falta de gosto pelos contatos pessoais. Speer não fala em frieza, mas esta fica patente quando ele comenta que Hitler, ao contrário de Churchill, jamais diria frases ao povo com calor humano, nada de “sangue, suor e lágrimas”, nada de visitas “in loco” para amenizar a dor nos lugares bombardeados. Para ele, Speer, ficou claro, ao ter lido Freud, Adler, Erich Fromm, que Hitler tinha uma verdadeira pulsão de morte. De resto, como observou o diplomata e opositor do regime Hans Bernd Gisevius, no livro “Até o amargo fim”, citado nos “Anexos”, o líder nazista “[…] soube atiçar os conflitos de consciência da população […], da má consciência coletiva”.

Um tópico importante tocado pelo antigo ministro nazista é o contexto de avanços tecnológicos no qual surge a figura de Hitler. Este foi, sem dúvida, um dos primeiros políticos a usar de importantes meios de comunicação, como o rádio, e de deslocamento (carros e aviões), o que garantia uma presença quase ubíqua por toda a Alemanha. Ele também “foi um produto da tecnologia”. Pode-se dizer também: da tecnocracia. Uma tecnocracia que, segundo o antigo ministro, também mina as nossas democracias ocidentais. Veja-se o exemplo de Bolsonaro a manipular esperta e pioneiramente as redes sociais, em especial quando de sua eleição à Presidência da República.

Sobre o carisma do chefe, Speer nos diz que isso “é uma questão de primeira ordem”, pois, muitas vezes, é um tema relegado a um segundo plano da História. Além da esfera política, há domínios em que o carisma é fundamental, a exemplo dos fundadores de religiões. Segundo o jurista Franz Leopold Neumann, autor que cita, “A potência carismática não é uma simples aparência falsa — ninguém pode negar que milhões creem naquela pessoa”. Essa observação de Neumann é tanto mais oportuna quanto mais nos perguntamos no que tanto creem em quem julgamos merecedor de uma total descrença. Compreender essa relação de mão dupla talvez seja um bom começo para melhorar nosso entendimento de certos “mitos” contemporâneos. Esse “ativo” da atenção, sempre tão precioso, não pode nem deve ser minimizado.

Nos “Anexos”, há uma consideração que parece viajar no tempo como uma advertência. A autoria é do já citado Hans Bernd Gisevius e do seu mesmo livro “Até o amargo fim”. Eis o que diz ele: “Uma das lições mais importantes que tiramos de nossa catástrofe [o nazismo] é de ter sabido com que facilidade se pode ser irremediavelmente empurrado no turbilhão, seja por excesso de prudência, seja por oportunismo, seja por covarde inação. Quanto mais trouxermos à luz tudo isso, mais outros povos e outros Estados serão levados a pensar que o mesmo fenômeno pode se produzir entre eles”.

Da citação acima, sublinho “o excesso de prudência”, o “oportunismo” e a “covarde inação” tão presentes na nossa conjuntura nacional. Ainda que sem o carisma de Hitler, são muitos os que, no Brasil e ao redor do mundo, gostariam de vestir novamente um figurino similar e, diante de inimigos “invisíveis” e falsos, levar a cabo uma política autoritária e totalitária. Ontem como hoje, atiça-se a má consciência coletiva, sataniza-se a arte, combate-se (seletivamente!) a ciência, dispara-se a mentira com velocíssimos calibres tecnológicos, desacreditam-se a lei e todo o ordenamento jurídico. Nos homens realmente de bem parece haver não só uma “covarde inação” (com honrosas exceções), mas um “excesso de prudência”…

Naturalmente, haveria muito mais a destacar no livro de Speer, todavia eis aí, em nossa opinião, seus principais ensinamentos e advertências.