Lisboa. Em 1996, fiz prefácio para um livro (Itinerário da Corte) de Marcos Vilaça, então presidente do TCU. Agora, quase 30 anos depois, reli o que escrevi. E levei susto. Porque muito pouco mudou, em nosso Brasil. Como o texto é bastante longo, cortei vastos pedaços. E dividi o que sobrou em duas colunas, o passado e o futuro. Peço permissão, ao amigo leitor, para transcrever esses pedaços, na esperança de que possa apreciar. Assim vamos, primeiro, ao PASSADO.
A vinculação da ética à ideia do bem, presente nos filósofos morais gregos, foi ganhando formas diferenciadas ao longo da história. Aflorando no Renascimento, indiferentemente, como fundada no egoísmo (Hobbes), no realismo político (Maquiavel), no sentimento moral (Hutcheson), no compromisso com a virtude (doutrina cristã).
Com o iluminismo tivemos as primeiras relações entre ética e política. Hegel e Locke, por exemplo, pensaram a revolução na dialética do senhor e do escravo ? uma relação de dominação e servidão onde o escravo trabalha inicialmente porque é obrigado e depois por dever e disciplina, satisfazendo mais o thymos que o desejo.
A parte que nos cabe no latifúndio dessas relações é um projeto econômico, no Brasil, incapaz de integrar as massas excluídas a um consumo pelo menos decente; hesitando entre uma “ética de sujeição” e uma ética de sobrevivência”, exercida em nossas esquinas, no que o Prêmio Nobel de Literatura (1989) Camilo José Cela, em Colmeia, chama de “cotidiana, áspera, estranha e dolorosa realidade”. E nada disso acontece por acaso.
O passado responde por algumas opções erradas que fizemos: de concentrar renda, em vez de criar mercado; de fazer infra-estrutura econômica, em vez de infra-estrura social; de voltar a produção para a exportação, em vez de mercado interno; de dividir a nação em corporações, em vez de buscar convergências; de pretender democracia formal, em vez de democracia econômica; de enriquecer empreiteiras, em vez de apostar no conhecimento; de cultivar certezas, em vez de pluralismo e diversidade.
Nossas elites sofrem hoje o bloqueio dos grupos em posição dominante, na sociedade, que não tem interesse em mudar nada ? com o poder político passando a atuar como agregado dessas elites, da qual é sua parte mais visível.
O grande empresariado aposta em um neoliberalismo que levará setores inteiros à ruína. O governo parece confiar que as propostas em curso não apenas estão corretas, como bastarão: que a integração crescente do país na economia mundial será suficiente para assegurar nosso desenvolvimento; que o fatalismo nos converterá, inevitavelmente, em um grande país.
As esquerdas, historicamente comprometidas com mudanças, agora fazem frentes “contra as reformas”. Vivendo o dilema de já não acreditar em sua ação política tradicional e não ser capaz de rejeitá-la. Continuam ignorando que parte do desemprego que temos é estrutural, apenas decorrente de exigências crescentes por mais performance e mais tecnologia; e reduzem seu discurso à defesa dos resíduos de um projeto esgotado ou à representação dos segmentos organizados da sociedade. A oposição que fazem ao neoliberalismo se converteu na pregação de um corporativismo de conveniência e de um nacionalismo simplista e bem-intencionado.
Vivemos as distorções de um modelo exaurido em que o fechamento da economia apenas tangencialmente exerceu seu papel de proteção da indústria nacional, na verdade transferindo riscos da iniciativa privada para o Estado; e com o serviço público se considerando desobrigado de maiores compromissos com eficiência ou interesse coletivo.
Somos um país dividido entre os que usam armas para assaltar e os que se armam com medo de serem assaltados; entre os (presos) que estão atrás das grades para que não possam sair e os que estão (presos, também) atrás das grades com medo de que outros entrem; entre os que não comem porque não têm comida e os que não comem porque estão de dieta. Mundos tão diferentes e tão iguais. Não por acaso somos um país desequilibrado, com um pedaço crescentemente integrado na economia e na cultura dos países ricos e outro pedaço exercitando a sobrevivência, ao mesmo tempo modernos e atrasados, ricos e carentes, autossuficientes e dependentes.
O nosso Zé Paulo, como sempre lúcido. Até mesmo quando escreve sobre o passado.