Passeata

Passeata

Talvez um pouco saudosista, reconheço, sou de outra geração. Vejo avanços na sociedade, mas muitos pontos a discutir. Procurar entender o momento atual é complexo para quem não foi formado nesta cultura, para quem valores definidores de posicionamento e luta podem ser bem diversos. Talvez os estudiosos possam melhor nos orientar sobre os rumos possíveis.

Tenho dificuldades com a Filosofia. Fiz alguns cursos, procuro ler os principais autores, mas minha lógica de pensamento é fortemente orientada pelo pragmatismo da formação acadêmica em ciências exatas e economia.

Nos meus alfarrábios dos cursos que frequentei, vejo que palavras de uso corrente e vulgar, hoje em dia usadas como sinônimos — ética e moral — têm significados diferentes dos empregados.

A ética está fortemente ligada aos modos e meios de agir, aos comportamentos e mesmo aos costumes de uma sociedade. É um código de conduta mais perene, que deve direcionar estruturalmente a sociedade. Já a moral é datada. Está intimamente ligada aos costumes de uma sociedade em tempos determinados. Muda com o evoluir da sociedade, com os hábitos, com os tempos que se sucedem.

Pode-se manter o código ético, mudando ou adaptando os princípios morais que se estabelecem. Atualmente, todos se dizem éticos — não duvido, em tese —, mas pouco ou nada se fala dos princípios morais que se renovam e trazem conflitos nítidos geracionais.

Sou de uma época em que a juventude engajada entendia que o fundamental era compreender as iniquidades e injustiças trazidas pela luta de classes. Entender como o proletariado se inseria no mundo capitalista e lutar para diminuir as desigualdades profundas em tempos de alta concentração de riqueza nas mãos do capital e seus apaniguados. Marx ainda era a referência principal. Essa era a lógica da revolta, da luta por ideais, pela busca de um mundo em que queríamos viver mais dignamente junto com todos os nossos semelhantes.

Os filósofos que nos orientavam, muito ligados ao estruturalismo — Sartre e mesmo Beauvoir, uma feminista muito competente, ou mais recentemente, pós-estruturalistas como Deleuze — tinham na busca de uma sociedade mais igualitária seu norte.

A própria questão das injustiças com as minorias surgia pelas características de uma sociedade que explora e sufoca o mundo do trabalho.

Não era um mundo segmentado, em que se viam apenas os grupos no seu isolamento e nas suas buscas individuais. Raça, gênero e opções sexuais eram vistas, sem dúvida, mas no contexto maior de um mundo em que o embate capital x trabalho era sua causa principal. Sem o enfrentamento desse problema, não haveria como chegar a uma sociedade mais equânime.

O mundo mudou. A moral atual baseia-se na questão do identitarismo e no corporativismo. Fracionou-se a sociedade. O relevante é um subgrupo, minoritário ou não. Mulheres, negros, LGBTQIA+ são os movimentos de engajamento. Na mesma linha, os grupos se organizam em causas muito justas, mas segmentadas. Ecologia radical, veganismo ou mesmo os interesses da dita comunidade científica também veem apenas o seu espaço, difícil compreenderem que estão inseridos numa lógica maior.

Pouco se fala do sistema. É importante garantir espaço para o MEU grupo. É o meio de luta, é o meio de manter a sociedade em sua quase falta de resistência às fortes disparidades advindas da própria lógica capitalista. As corporações e os identitários se organizam e se encastelam em lutas individuais e desconectadas.

Movimentos ambientalistas conservadores criam uma visão segmentada e ultra-rigorosa, para não dizer muitas vezes radical. Veem um mundo que deve unicamente ser orientado pelas questões ambientais, sem concessões, sem procurar entender as contradições advindas do econômico e do social, ou a necessidade urgente de enfrentamentos das mazelas que desconsideram a maioria da população.

Existem os ambientalistas primitivos, com ideias preconcebidas e totalmente intolerantes. Nas palavras do filósofo e político francês Luc Ferry, o radicalismo ecológico se expressa na seguinte frase: “O amor à natureza oculta o ódio aos homens.” Infelizmente, por trás de visões importantes num mundo em que a exploração não limita o destruir da natureza, ainda se encontram dogmatismos e incompreensões desviantes.

Interessante ressaltar que todos esses movimentos justificam sua luta por razões históricas de opressão. Verdades incontestes — o patriarcalismo e a expropriação alijaram segmentos importantes do usufruir do progresso técnico. O problema que surge é entender que, nessa segmentação atual e na busca do resgate segmentado, se oprime e muito. Pagar a herança significa oprimir o homem branco heterossexual que estaria, obrigatoriamente, fora da maioria desses grupos? Ele é a causa de todos os males? Ele tem que ser sempre estigmatizado?

Fui ler um texto. Um estudo de sociologia que considerei sério. Ao analisar o casamento homoafetivo, questão que dominava a luta dos movimentos LGBTs no início deste século, mostra que todo esse processo de embate por direitos iguais, numa sociedade em que as normas morais são definidas ainda por padrões gerais orientadas pela expropriação capitalista, pouco avanço trouxe para as comunidades específicas em seu todo, como aceitação numa sociedade machista. Ou seja, sempre se resumem a lutas pontuais sem analisar a dinâmica social maior e as efetivas razões de existência das práticas opressivas. Os resultados são pouco expressivos.

Lutas pontuais são relevantes, mas não modificam a estrutura em si, fundamental a consciência dos movimentos maiores que são normativos. Elas, per si, podem ser um desvio para manter sob controle grupos que precisam e merecem espaços maiores na sociedade.  Uma maneira de manter a dominação e uma civilização em que os oprimidos não conseguem fugir dessa armadilha.

O cotidiano mostra isso. As reações não se diluem. Criam-se ambientes que pouco avançam em prol de uma sociedade mais igualitária.

Quando em uma reunião em que é preciso tomar uma decisão, a direção do evento começa com a frase de que o resultado “tem que ser Mulher”, gera-se desconforto e se estabelece a cizânia. Os critérios pré-definidos de mérito ou de qualidade passam a ter validade secundária, o explicitado nas normas publicadas como orientação perde a validade.

Recentemente tive uma experiência nessa direção. Três meses de leitura de material, de conversas orientadoras, de troca de ideias com participantes do processo, uma busca meticulosa de perfis mais adequados. Uma pessoa séria e bem-intencionada, acredito, no entanto, assumidamente direcionada para um dos vieses acima expostos, no uso de seu poder institucional, que não participou nenhuma vez do processo, vem presidir a reunião final e começa com a frase, “tem que ser mulher, é um resgate da história opressiva que caracteriza nossa sociedade”. Melhor abandonar a reunião, os trabalhos árduos desenvolvidos e não participar da decisão.

Numa reunião do movimento negro, um estudioso do tema, é homem branco. Convidado para participar, em dado momento, concordando com o dito, pede a palavra inclusive para reforçar o ponto de vista apresentado. Sua palavra é caçada, não lhe é permitido se manifestar: “Aqui você não fala, por muitos anos nos impediram de manifestar o que pensávamos e agora nós não admitimos que um branco venha nos dizer qualquer coisa.” 

Essa nova moral incomoda. Faz com que se gere conflito no seio dos desfavorecidos, nos meios que deveriam entender que o que gera ou gerou essas iniqüidades foi uma postura que convinha aos poderosos. Cria conflito entre aqueles que devem se unir. Valorizar apenas as singularidades pouco avança numa sociedade mais justa. Perde sentido falar em movimentos de esquerda, pois não há causa unificadora.

Triste, vendo cada vez mais os movimentos identitários e corporativos assumirem a dianteira das lutas sociais, da luta daqueles que se dizem de esquerda, não vejo como mudar uma sociedade perversa se não for resgatado o princípio maior da luta que vale travar: “ Avante, famélicos da terra…; Bem unidos, façamos; Nesta luta final; Uma terra sem amo, a Internacional.”