Edmundo Gonzalez Urrutia, o diplomata desconhecido que ganhou a eleição presidencial de 28 de julho este ano na Venezuela, provocou uma manchete surpreendente no jornal espanhol “El País” deste 9 de dezembro: “Estarei na Venezuela 10 de janeiro para tomar posse. Não presidirei um governo no exílio.” Dia 10 de janeiro, no calendário de Caracas, deve começar um novo sexênio presidencial. Para quem vem acompanhando os acontecimentos na Venezuela, a declaração surpreende: estaria Gonzalez fazendo teatro, em Madri, onde obteve asilo, ou teria informações privilegiadas? Terá Gonzalez dito isso mesmo? Ou terão os entrevistadores do diário madrilenho optado por destacar, reinterpretada, a frase transformada em título sensacionalista?
Talvez estejamos colocando o foco na primeira frase, quando o que importa é a segunda frase, a rejeição à ideia de um “Presidente encargado” no exilio, a malfadada estratégia da oposição de 2018. Como observou uma vez Paulo Vanzolini sobre um dos sambas dele, todo mundo lembra o lema “levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima”, mas a frase mais essencial vem antes: “reconhece a queda”. Vanzolini explicou que não dá para levantar sem antes reconhecer a queda. Então quem sabe Gonzalez esteja advertindo que governo da Venezuela no exílio já houve, o de Juan Guaidó, reconhecido em 2019 por uns 60 países e pelo Parlamento europeu. Para que repetir a ideia fracassada de dois presidentes, um que transformou o lindo Palácio de Miraflores em bunker, o outro governante sem território? O apoio a Guaidó, passado um ano, já estava rarefeito, agora poucos lembram dele mesmo entre venezuelanos no exterior, uma diáspora de quase 8 milhões.
A propaganda de Maduro conseguiu pintar Juan Guaidó como “títere dos ianques”, por sua defesa de sanções contra a Venezuela. Guaidó defendeu até o embargo das reservas em moeda estrangeira de seu país, mesmo quando houve proposta de liberá-las para programas do PNUD na Venezuela. Não entendeu que sanções econômicas na verdade favoreceram Maduro, que atribuiu a elas a miséria e a escassez no país, até os apagões recorrentes, sempre atribuídos a “sabotadores oposicionistas”, até o recente, que atingiu a Venezuela toda dois dias depois das eleições. Sanções jamais conseguiram mudança de regime, nem mesmo do apartheid na África do Sul. E a carreira política de Guaidó acabou depois de seu envolvimento em uma tentativa de golpe rocambolesca em maio de 2020, uma operação que ganhou apelido de “Baia dos Porquinhos”.
Em suma, está mais que certo Edmundo Gonzalez em sinalizar que não quer ser mais um Presidente sem território, a malfadada estratégia de 2018. Tem mais na entrevista: avisa que é contra sanções. E sugere que negociações entre todas as partes envolvidas devem continuar.
As eleições venezuelanas de 28 de julho se deram sob o signo dos Acordos de Barbados, de outubro de 2023, que resultaram de negociação entre representantes do governo Maduro e de uma frente de partidos oposicionistas, mediada pela Noruega e com apoio de vários países, Brasil inclusive. O governo da Venezuela prometeu convocar eleições com compromisso de observação internacional. Acordos que a oposição cumpriu com habilidade e persistência, e que o ditador de indubitável talento histriônico descumpriu desde o início.
Ao que parece, Maduro aceitou os acordos na pressuposição de que ganharia um pouco mais que a metade dos votos, o que seria base para continuar negociações e obter mais concessões. Sanções foram aliviadas, houve troca de prisioneiros, alguns voos repatriaram emigrantes venezuelanos dos Estados Unidos, a inflação desacelerou, houve alguma melhora na economia, ainda que a dolarização tolerada tenha agravado agudas diferenças de padrão de vida.
De qualquer modo, Maduro adiou o máximo possível o anúncio da data da eleição, deixou prazos apertados para o registro de candidaturas, impediu as candidaturas mais populares produto de coligações (alegando que o fazia para garantir a concorrência de eleição democrática!), montou uma cédula eleitoral bizarra em que aparece 13 vezes. Prendeu líderes e coordenadores de campanha de partidos de oposição. Escalou ameaças verbais e físicas.
Poderíamos ocupar muitas páginas para relatar as prisões, as perseguições sistemáticas, as dezenas de mortos em manifestações, as centenas de prisioneiros e feridos, os abusos de poder. Sem contar o assédio a cidadãos individualmente, as restrições a jornalistas e jornais, o impedimento de acesso à mídia digital. A brutalidade da repressão está relatada em detalhe nos documentos do Centro Carter e de Human Rights Watch, de ONGs e comentaristas venezuelanos, na advertência do Procurador do Tribunal Penal Internacional, no relatório de uma missão à Venezuela apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, que descreve os abusos de direitos elementares cometidos no período de 1 de setembro de 2023 a 31 de agosto de 2024. Segundo esse relatório (A/HRC/57/57 de 17 de setembro de 2024), só nos dias depois da eleição foram mortas 25 pessoas.
Desde a campanha eleitoral quase não há dia em que a imprensa no Brasil e a internacional não tragam notícia de violência e abuso de direitos elementares na Venezuela. Não estão esquecidos os presos políticos, cujos nomes estão sendo obtidos e divulgados. Aqueles que se refugiaram na Embaixada da Argentina pedem ao Presidente brasileiro que intervenha em seu favor.
Em resumo, fato é que a eleição já não era democrática antes mesmo de o primeiro voto ser registrado em 28 de julho. Mesmo assim os partidos de oposição trataram de participar, cumprindo o que assinaram nos Acordos de Barbados. Aceitaram apresentar outros candidatos quando o governo impediu Maria Corina Machado (pois que os acordos haviam pedido eleições sem especificar preferência a quaisquer candidatos).
A novidade desta eleição de julho de 2024 é o trabalho de comprovação da fraude organizado pela oposição, a coleta e a reunião das agora famosas atas. Pois denúncias de fraude são rotineiras desde 2002. Por isso mesmo é que importa a demanda para que a administração Maduro mostre as atas, uma estratégia liderada por Colômbia, Brasil e México. Comentários derrisórios estão errados, mesmo porque é necessário manter canais de negociação abertos, no mínimo pela vida dos prisioneiros políticos.
Está claro que Maduro não cumpriu sua parte nos Acordos de Barbados e será preciso ver como poderá prosseguir a intermediação e a pressão internacional. A diplomacia internacional está sendo mais prudente dessa vez: Estados Unidos, União Europeia e 10 países da América Latina reconheceram que Edmundo Gonzalez obteve a maioria dos votos. Um tanto diferente de reconhecer um Presidente sem território. Continuam reclamando as atas, apesar do precipitado reconhecimento da vitória de Gonzalez antes de ter atas. Como as cópias que trouxe a Brasília dia 25 de novembro Gustavo Silva, um dos coordenadores do esforço de reunir os boletins de urnas. Deveriam ter esperado, em apoio ao trabalho de organização admirável que fez a oposição dessa vez. Buscaram ter prova irrefutável da contagem de votos, para não caírem de novo na acusação recíproca de fraude. Não se podia esperar que já estivessem reunidas cinco dias depois da eleição, em 2 de agosto, quando o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) declarou Maduro eleito com 51,9%. Um dos membros do CNE, Elvis Amoroso, membro do PSUV, já havia comunicado tal resultado mal encerrada a eleição, e Maduro já havia dito que o sistema eleitoral da Venezuela é o melhor do mundo com resultados em tempo real e que a vitória eleitoral de Gonzalez é um golpe oposicionista apoiado internacionalmente, sob a liderança da CIA e seus agentes; ordenou investigar Gonzalez por “usurpação de funções” e “falsificação de documentos”. Sem qualquer documentação.
“Sem evidência” é o que declarou na entrevista ao “New York Times” em 26 de agosto um dos cinco membros do CNE, Juan Carlos Delpino: “não tinha recebido evidência” de que Maduro obtivera a maioria dos votos e estava envergonhado de que o CNE tivesse declarado o vencedor sem evidência. Para dizer isso, teve que ficar na clandestinidade e parou de participar no CNE. O governo Maduro passou a ameaçar de prisão toda pessoa que duvide do resultado anunciado pelo CNE. Por isso é que esteve certo o Centro Carter quando cancelou o comunicado que faria poucos dias depois da eleição e pediu entrega das atas das urnas, que deveriam estar disponíveis como de costume. Retirou da Venezuela o seu pessoal ameaçado e só depois de receber da coordenação da Frente de oposicionistas um número suficiente de cópias das atas enviou estas à OEA e declarou que era fraude a vitória de Maduro.
Já desde as pesquisas de opinião que mostraram queda de apoio ao PSUV, a campanha eleitoral não correspondeu às previsões de Maduro sobre sua própria base de apoio. Aparentemente uma parte do eleitorado concluiu que Maduro traiu as promessas originais do chavismo, que já não obterá de Maduro o que Hugo Chavez prometeu um dia, Maduro já não é considerado continuação de Chavez. O tal “pajarito”, que lhe transmitiu recado de Chavez sumiu, substituído por IA. Maduro agora tentava encarnar Bolivar sem intermediação, postando fotos segurando as rédeas de um cavalo branco.
Parece que, no princípio da apuração, chefes do PSUV perceberam que eleitores de bairros pobres haviam abandonado Maduro para votar em oposicionistas. O que explicaria a escalada da violência dos agentes de Maduro nem bem terminada a apuração. A desilusão do eleitorado mais pobre está refletida até no fato de que mais de 12 mil venezuelanos cruzaram a fronteira para o Brasil em agosto, depois de anunciado o resultado da eleição, pois Colômbia e Brasil sempre receberam os imigrantes mais pobres, os mais ricos conseguem chegar à Espanha ou os Estados Unidos. É o que determina, também, a necessidade maior que têm esses países de manter canais de negociação para evitar um novo êxodo de venezuelanos.
A outra novidade além das atas, a da fúria sem precedentes de Nicolás Maduro contra o Presidente Lula da Silva é um capítulo que merece análise separada. Inclui coisa bem mais estapafúrdia do que uma famosa propaganda de chá de camomila, como a teoria de Tarek William Saab, Procurador-geral da Venezuela, de que os presidentes do Brasil e do Chile, Lula e Boric, são agentes da CIA. Lula teria sido cooptado no tempo em que ficou preso. Pois é, além de expressar preocupação com o “banho de sangue” anunciado pelo ditador às vésperas do dia da eleição, o Presidente do Brasil conseguiu impedir a entrada da Venezuela no BRICS, apesar de uma viagem inesperada de Maduro especialmente para conversar com os russos. Não saberá ainda que a geopolítica andou mudando?
comentários recentes