Mariann Budde

Mariann Budde

De repente, logo após a posse de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, uma cerimônia religiosa vira o primeiro ato de oposição a seu governo. E que ato! A surpresa veio em palavras medidas, numa entonação tranquila… Por um momento, os fiéis trumpistas pareceram não entender o que estava se passando. Normal. Do púlpito, com a autoridade moral de ser a bispa de Washington D. C., Mariann Budde, uma desconhecida para nós, mas conhecida dos americanos, apostrofa diretamente o presidente americano. Faz-lhe um pedido de clemência em nome dos humilhados e ofendidos. Lembra a Trump que muitos são pessoas de bem e trabalham para o andar de cima: são os invisibilizados que lavam banheiros, que servem nos restaurantes finos, que têm trabalhos “humildes” e indispensáveis; são os fiéis de várias igrejas e confissões: de templos cristãos, de mesquitas, de sinagogas… A bispa também lembrou de pedir clemência aos que sofrem por suas opções sexuais. Por alguns segundos, os queixos dos reptilianos estremeceram e caíram. Queixos de caras de tacho. Sim, inacreditável, eles estavam ouvindo tudo aquilo, o sermão chegara a um inesperado ápice.

Naturalmente, Mariann Budde não falou apenas para Trump e sua horda de reptilianos. Falou para os verdadeiros cristãos e, politicamente, para todo o mundo. É claro que da parte do novo presidente nada mudará. A clemência invocada não faz sentido para alguém sem empatia e patologicamente avesso ao diálogo, narcisicamente ensimesmado num autossuficiente voluntarismo. “Words, words, words”, como disse o Bardo em evidente contradição com o fato mesmo de ser bardo. Mas não é bem assim. Para muitos pensadores, a palavra é uma forma de ação: ela também transforma a realidade. Mariann Budde agiu, fez o que deveria ter feito em consonância com sua filosofia de vida e com sua fé. Por toda parte, milhões de pessoas razoáveis devem ter vibrado com seu incisivo apelo a uma consciência moral, a uma humanidade quase inexistente.

Como muitas pessoas ao redor do mundo, fui ao Google atrás de informações sobre a bispa que roubou a cena. Descobri que, entre outros livros, Budde escreveu “Learn to be brave: decisive moments in life and faith” (“Aprenda a ser corajoso: momentos decisivos na vida e na fé”), sem tradução no Brasil. Foi o caso. Ela chamou a si, em nome dos fiéis, o decisivo momento histórico da posse presidencial. Abriu uma fresta, tentou rachar o gelo, buscar um fio de empatia e solidariedade num novelo de neofascismo e absoluta frieza. Enfim, foi coerente com o que prega. Para o púlpito onde falava convergiu o olhar do mundo racional, a sensata luz de Apolo e a piedade cristã.

Bertrand Russell admirava Spinoza não exatamente por sua filosofia, mas por ser um dos poucos pensadores que viveu de acordo com as ideias que defendia. Para Russel, em sua “História da Filosofia Ocidental”, “Spinoza (1634-1677) é o mais nobre e o mais amável de todos os grandes filósofos. Intelectualmente, alguns outros o superam, mas eticamente é supremo”. Mariann Budde, ao que parece, é dessa família de Spinoza: a da coerência ética entre palavra e existência. Spinoza ganhava a vida polindo lentes. A bispa de Washington, polidamente, abriu os olhos, ou pelo menos tentou, dos que insistem em mantê-los fechados ou semicerrados ante a barbárie anunciada.