
Papa Francisco
O filme “Conclave”, do diretor suíço (alemão de nascimento) Edward Berger, ao que parece, será premiado pelo Oscar, uma vez que concorre, salvo engano, em oito categorias. Não há dúvida de que é um belo filme, com interpretações, roteiro e fotografia à altura do tão litúrgico quanto midiático evento que estampa no seu título. Grande parte de sua ação transcorre num lugar que, no atual papado, tem uma emblemática importância: a Casa Santa Marta (como se sabe, no filme, recriada em estúdio).
Uma vez escolhido papa, o argentino Jorge Mario Bergoglio, que agora em março completa uma dúzia de anos de pontificado, tomou duas decisões impregnadas de grande simbolismo. A primeira decisão é bem visível: o nome que assumiu, uma homenagem ao santo de Assis: Francisco. A razão? O amor aos pobres. Aliás, é curioso, senão significativo, que, ao longo de tantos séculos, nenhum dos eleitos tenha escolhido um patrono tão rico de sentido para a Igreja Católica. Por seu amor à natureza e a todas as criaturas, Francisco, o santo, lembra o sentido de harmonia que transcende abstrações teológicas e filosóficas. É um santo ecológico, simples, plástico, pobre por vocação e sobretudo alegre.
A segunda grande decisão de Bergoglio, de certa forma menos visível, bem se coadunou com o nome que escolheu como pontífice. Ele decidiu não morar no Palácio Apostólico (que é grande, mas, segundo comentam, não exatamente luxuoso), a que teria direito pelo cargo que ocupa. Preferiu um lugar simples e despojado, onde poderá ficar longe da solidão do poder, essa famosa e nunca bem lembrada solidão!
Francisco escolheu justamente a Casa Santa Marta, uma hospedaria para clérigos, cardeais e outras personalidades que estejam em trânsito no Vaticano. Enfim, nada de pompas, após um antecessor que foi um intelectual brilhante, e não menos brilhante na sua indumentária litúrgica, na qual reverberava o seu irredutível conservadorismo. Apodado de “O Rottweiler de Deus”, o alemão Joseph Ratzinger (1927–2022), o papa Bento 16, tinha de fato outros valores a zelar; era um metafísico, um teólogo e consabidamente um homem de gabinete. Bergoglio, por sua vez, possui uma maior vocação pastoral e tem os olhos postos numa sociedade que velozmente se transforma.
Ao ter escolhido a Santa Marta, Francisco parece ilustrar as penetrantes palavras de Heidegger em seu conhecido ensaio “Construir, habitar, pensar”. Fundamentado em seu fervor etimológico, o filósofo de “Ser e tempo” nos adverte que “Habitar, ser trazido à paz de um abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência. O traço fundamental do habitar é esse resguardo. O resguardo perpassa o habitar em toda a sua plenitude”.
A Santa Marta é um lugar de trânsito. Ali o papa Francisco vive e convive, talvez um pouco mais aliviado do peso da hierarquia e de suas altas responsabilidades. Não dispensou apenas, como dissemos acima, a solidão do poder, mas foi ao encontro simbolicamente do Outro: dos hóspedes, dos estrangeiros, dos que lá, diferentemente dele, papa, não habitam nem podem habitar. Ao justificar sua escolha, Francisco teria dito: “Não consigo viver sozinho. Preciso viver minha vida com outros”. O simbolismo é evidente e está em sintonia com o padroeiro escolhido.
Sob um olhar mais político e realista, um amigo me observou, por ocasião da eleição do argentino, que Bergoglio, ao preferir a Santa Marta, antecipava-se a possíveis perigos, a solidões que podem propiciar atentados e até homicídios. De fato, estar com os outros é mais seguro, mais saudável, mais vital. Apesar disso, como nos lembram inúmeras cenas de “Conclave”, a Santa Marta também pode profanamente ser palco de conflitos e de uma velada e dramática luta pelo poder.
À parte visões conspiratórias e mundanas, Francisco assumiu, num sentido claramente heideggeriano, o seu “habitar” na Casa Santa Marta. Ali tem o seu “pertencimento” e “resguarda a essência” do que julga primordial para a sua vida e a vida do seu pontificado.
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