
Ainda Estou Aqui
Não veio o Oscar de “Melhor Atriz” para Fernanda Torres. Pior para o Oscar! Imagino que por muitos anos, esse não evento há de pairar nos ares e na memória dos brasileiros como as inefáveis e lendárias polegadas a mais de Martha Rocha (1932–2020), nos idos já remotos de 1954. Esse merecido Oscar que não veio sempre será uma sombra dourada por trás da estatueta efetivamente conquistada.
O Oscar para o filme brasileiro foi, durante os últimos meses, um fruto maduro para mãos e bocas sedentas. Mas, graças à própria Fernanda Torres, em nenhum momento foi precocemente colhido. Com inebriante simpatia, nossa grande atriz soube como ninguém, num tempo de grosserias e disfemismos, exercer aquilo que a psicanalista e filósofa francesa Anne Dufourmantelle (1964–2017) chamou de “Puissance de la douceur” em livro entre nós traduzido como “Potências da suavidade”. Fernandinha preferiu a essência da suavidade, da discrição e de uma infinita paciência.
Após ter encarnado uma estoica e perseverante Eunice Paiva, Fernandinha pareceu viver, em dias de ansiedade coletiva para os brasileiros, o que foi apontado no reflexivo ensaio de Dufourmantelle: “Ser suave com as coisas e os seres é compreendê-los na sua insuficiência, sua precariedade, sua imaturidade, sua tolice. É não querer intensificar o sofrimento, a exclusão, a crueldade e inventar o espaço de uma humanidade sensível […]”. Imagino que, em sua obstinada firmeza, também Eunice Paiva subscreveria essas palavras impregnadas de sabedoria.
O Oscar de fato conquistado — o de Melhor Filme Internacional — contempla, por óbvio, um enorme e cuidadoso trabalho de equipe. É prêmio que deve muito a outra suavidade: a do diretor de “Ainda estou aqui”. Em contraste com tempos de radicalismos, Walter Salles optou por levar à tela uma política, como expressou Joaquim Nabuco, com “P maiúsculo”, não carregando em tintas menores, mas suavemente semeando as iscas necessárias à nossa empatia.
O que há de mais contundente no filme é o sequestro da alegria (“este outro nome da suavidade”, como diz a ensaísta citada), é o impedimento da claridade. É nessa falta de luz, nessa penumbra trágica de cortinas fechadas à força, que Eunice Paiva haverá de se mover. Sua resistência inverte as afrontas sofridas, infiltra-se na cidadela inimiga, a exemplo da emblemática contraordem que ela dirige a si mesma e a seus filhos: “Nós vamos sorrir, sim. Sorriam”. Sorrir será talvez a mais suave máscara com que se possa resistir. Como dito no belo ensaio de Dufourmantelle, em nosso tempo, “A suavidade nos é vendida sob sua forma adulterada de sentimentalismo”. Mas é a recusa a todo e qualquer sentimentalismo que faz de Eunice um singular farol de cidadania e abona o sorriso inesperado que vem a contrapelo da circunstância. Por esse conflito de sentimentos e emoções, não custa imaginar o quanto foi exigente interpretar Eunice Paiva.
É nesse encontro de suavidades inteligentes que se orquestra a graça de “Ainda estou aqui”. Se a vida, como disse Vinicius de Moraes, é a arte do encontro, o melhor cinema também é ou pode sê-lo. Seu Oscar, já não fulanizado, premiando um bem-sucedido trabalho em equipe, cresce ainda mais de um ponto de vista simbólico e profundamente humano.
Belo, PG.
Obrigado, amigo!
Abraço grande
Obrigado, Mestre!
Abraço fraterno!