
Democracia e mídia social
O século XXI consolidou-se como uma era de transformações profundas e aceleradas, que impactam diretamente a forma como as sociedades se organizam, comunicam, governam e compreendem a si mesmas. Mudanças que antes se davam ao longo de gerações hoje ocorrem dentro de uma única vida. Esse ritmo vertiginoso, provocado pela revolução digital e tecnológica, produz um mal-estar generalizado — especialmente entre instituições e atores sociais que não conseguem acompanhar sua cadência. O resultado é um mundo que, como se diz popularmente, virou de ponta-cabeça. E o Brasil, inserido nesse cenário, convive com contradições profundas, tanto em suas estruturas históricas quanto nos novos fenômenos que marcam a contemporaneidade.
Entre essas transformações, destaca-se a mudança radical nos meios de comunicação e no processo decisório da população. No passado recente, o acesso à informação era mediado por canais relativamente estáveis e hierarquizados, como rádios, jornais e televisões. Hoje, esse fluxo é descentralizado, veloz, difuso — e, muitas vezes, desprovido de critérios rigorosos de veracidade. As redes sociais tornaram-se arenas privilegiadas para o compartilhamento de conteúdos nem sempre ancorados em fatos, onde a desinformação encontra terreno fértil. Bilhões de pessoas vivem conectadas a telas, imersas em bolhas digitais que moldam suas percepções de mundo, crenças e decisões políticas.
Esse processo se intensificou com o avanço da inteligência artificial, que torna indistinguível o que é real e o que é fabricado. Casos recentes no Brasil, como o recuo do governo diante de reações virais a normas da Receita Federal, evidenciam o poder de mobilização — e de manipulação — dessas plataformas. Empresas como a Meta, ao abdicar de responsabilidades como a verificação de fatos, transferem aos próprios usuários o ônus de discernir entre verdade e mentira, aprofundando o cenário de incerteza, vulnerabilidade informacional e desinformação — um dos maiores males de nosso século, nas palavras de Bill Gates.
Diante desse contexto, impõe-se uma reflexão urgente: qual deve ser o papel do Estado nesse novo ecossistema? Se, por um lado, as redes sociais ampliam a participação e o acesso à informação, por outro, representam um enorme desafio à governança democrática. Não se trata apenas de regular ou fiscalizar. Trata-se de reconhecer as redes como um território digital — uma nova dimensão da vida social, tão complexa quanto estratégica, que exige presença ativa, competência técnica e visão de futuro por parte das instituições públicas. E também regulação.
Essa territorialidade digital ultrapassa fronteiras geográficas, culturais e sociais, demandando uma atuação estruturada do Estado. Assim como a criação de um território físico exige políticas, normas e infraestrutura, a ocupação desse espaço virtual requer investimentos em capacitação de servidores, contratação de especialistas em algoritmos, ciência de dados, regulação e comunicação digital, além do uso estratégico de tecnologias como a inteligência artificial para interpretar tendências sociais, antecipar crises e promover ações eficazes — sempre com respeito à liberdade individual e à privacidade.
Contudo, tecnologia por si só não basta. É necessário romper com a lógica de comunicação vertical e investir em campanhas institucionais claras e inclusivas, capazes de reconstruir pontes em uma sociedade fragmentada. A psicologia social nos alerta para os perigos da conformidade cega a grupos ou líderes, especialmente quando motivada por processos de identificação e internalização, segundo Eliot Aronson. Por isso, quando valores e crenças se cristalizam a ponto de tornar impossível o diálogo com o diferente, abre-se espaço para o fanatismo — que é, por definição, incompatível com os princípios democráticos.
No Brasil, observa-se com preocupação o fechamento de grupos em bolhas informacionais impermeáveis, especialmente entre segmentos de extrema-direita, onde o pensamento divergente é visto como ameaça, e não como contribuição legítima. Essa lógica transforma adversários em inimigos, destruindo os fundamentos do debate público e da convivência plural. Como adverte Adam Przeworski, “amar a incerteza é condição para ser democrático” — e é justamente essa incerteza, produtiva e dialógica, que está sendo sufocada pelo dogmatismo digital.
Diante disso, torna-se imperativo que o Estado brasileiro — e, por extensão, toda a sociedade civil — compreenda que as redes sociais são mais do que ferramentas de comunicação. São territórios estratégicos, onde se definem as fronteiras da verdade, da política e da convivência democrática. A omissão nesse campo significa ceder espaço ao caos, à manipulação e à erosão das instituições. A ação, por outro lado, exige planejamento, coragem, inovação e compromisso com o bem comum.
Em tempos de aceleração, fragmentação e desinformação, o desafio é grande, mas inadiável. O Estado precisa ocupar o território digital com responsabilidade, inteligência e sensibilidade democrática — não apenas para garantir o bem-estar da população, mas para preservar o próprio futuro da democracia brasileira.
comentários recentes