Alexandre de Moraes

Alexandre de Moraes

A história está acontecendo ao vivo e em cores, na telinha da TV. Se uma imagem diz tudo, a dos golpistas sentados no banco dos réus diz ainda mais. É um fato inédito em nossa história, marcada, desde o advento da República, por uma sucessão de golpes e intervenções militares na vida política nacional. Essa sequência de atos antidemocráticos teve um pano de fundo: a influência do positivismo no mundo castrense, com os militares se autoatribuindo o papel messiânico de redentores da Pátria, por meio de uma “ditadura esclarecida”.

O surgimento da Revista Defesa Nacional, cuja primeira edição foi lançada em 1912, marcou profundamente a formação da mentalidade autoritária e salvacionista de nossos militares. A revista refletia um projeto político-ideológico de parte do Exército brasileiro que via os militares não apenas como defensores do território, mas como um “estamento tutelar” da nação — um grupo incumbido de guiar, proteger e até corrigir os rumos do país.

A visão positivista, inspirada no pensamento de Auguste Comte, levou os militares brasileiros a se atribuírem o papel de promotores da moralização da vida pública, da modernização do Estado e da unificação nacional. As elites civis e os partidos políticos eram vistos como corruptos e responsáveis pelo atraso econômico, social e cultural do país.

Com base nesse pensamento, os militares tiveram papel relevante na Revolução de 1930, na implantação do Estado Novo e no golpe militar de 1964, mergulhando o Brasil em um pesadelo de 21 anos de ditadura. O “nacionalismo autoritário” que inspirou essas intervenções também levou parte dos militares a selar uma aliança com o governo Bolsonaro, servindo de pano de fundo para o golpe — felizmente fracassado — articulado por Bolsonaro e um núcleo de militares palacianos.

Há ainda outro fator que contribuiu para a tradição golpista em nosso país: a impunidade. Os golpistas quase nunca sentaram no banco dos réus nem foram condenados por conspirar contra a democracia. Não por acaso, a única tentativa de golpe que gerou um processo e condenação de seus participantes foi o levante de 1935, liderado por militares de esquerda, alguns deles membros do Partido Comunista Brasileiro, como Luiz Carlos Prestes e Agildo Barata. Esses foram condenados, passaram oito anos na prisão e só foram anistiados em 1945.

Essa tradição é finalmente quebrada agora, em um ambiente democrático e sob rígida observância do Estado de Direito, com amplo direito de defesa e de forma clara e transparente. O juiz-ministro relator conduz os interrogatórios sem coação, e os meios de comunicação acompanham, à luz do dia, os depoimentos dos réus.

Não há como deixar de registrar a brutal diferença entre esse processo judicial, que ocorre em plena democracia, e os processos comandados pelos militares durante a ditadura. Lembro-me da minha audiência de instrução na Sexta Auditoria do Exército, em Salvador, Bahia. O juiz-auditor não me permitia falar livremente e, quando comecei a denunciar as torturas que eu e meus companheiros havíamos sofrido, ele ordenou que minhas denúncias não constassem na ata da audiência.

Não sofri represálias por isso, mas houve outros presos, pelo país afora, que foram processados novamente ao denunciarem, nas auditorias militares, as torturas que haviam sofrido — quando não eram simplesmente mandados calar a boca. Éramos julgados por tribunais de exceção, compostos por três militares e um juiz-auditor que apenas formalizava o julgamento. A sentença, porém, já estava decidida de antemão pelos órgãos de informação das Forças Armadas.

São vários os exemplos. O julgamento de Rui Patterson, condenado a doze anos pela Sexta Auditoria do Exército, durou exatos dois minutos, tempo gasto pela junta militar para proferir a sentença. No processo que enfrentou na Auditoria Militar de São Paulo, minha companheira, Gilseone Westin Cosenza, tentou usar o mesmo expediente que o general Augusto Helenousou agora — o direito de permanecer em silêncio e não responder às perguntas do juiz-auditor. Recebeu a seguinte ameaça:

“Vou mandá-la para o hospício, e depois você vai aparecer na sarjeta com a boca cheia de formiga.”

Felizmente, o general Heleno pôde usar e abusar de seu direito de não responder ao juiz-ministro do STF sem sofrer qualquer constrangimento legal. Se se enrolou nas perguntas do próprio advogado, são outros quinhentos.

Relembro tudo isso com a alma leve e desprovido de qualquer sentimento de revanchismo. O caminho da transição do Brasil da ditadura para a democracia foi o possível, e deve ser valorizado por ter conduzido à conciliação. Pagamos um preço alto ao não punir os torturadores e os responsáveis por mergulhar o Brasil em uma longa noite de 21 anos. Mas foi o preço a ser pago.

Comparar os “julgamentos” do período da ditadura com o julgamento de Bolsonaro e de outros membros do “núcleo crucial” do golpe não deve servir para desejar a eles o mesmo tratamento reservado aos presos políticos daquela época. A comparação se impõe para celebrar o amadurecimento da democracia brasileira e saudar o fato de que os réus da intentona golpista estão tendo assegurado o mais amplo direito de defesa e estão sendo tratados com respeito.

Viva a Democracia!