Águia americana

Águia americana

 “O esforço heroico de Marco Aurélio, em suas Meditações, foi pela conservação da Romanitas, aquele grande sistema de lei, ordem e cultura”.

         Russell Kirk, em A Política da Prudência, pg. 148.

O grande dissenso do projeto moderno está datado. Auge da guerra fria. Década dos anos 1960. Capitalismo x comunismo. Estados Unidos x União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS. Esse pêndulo tornou mais claros os conceitos do pensamento conservador norte-americano. Suas fontes remotas estão nos escritos dos Federalistas, de 1778. E suas raízes próximas estão nas ideias de Russell Kirk. Autor de A mente Conservadora (Editora É, 2020, São Paulo) e de A Política da Prudência (Editora É, 2013, São Paulo).

Segundo Kirk, “a base cultural de uma sociedade sadia é dada pela vida familiar, pela religião e pela educação liberal”. E mais: “As concepções ideológicas devem ser combatidas por modelo educacional humanista, comprometido com os clássicos da civilização ocidental”. Nesse contexto, as políticas de Estado devem preservar a ordem, a justiça e a liberdade.

Para Kirk, o século XX sofreu colapso de uma ordem moral. Para evitá-lo, os conservadores defendem os costumes, a convenção consensual e a continuidade. Tudo baseado no princípio da prudência, a maior das virtudes.  E acrescenta que a Constituição dos Estados Unidos, de 1778, é exemplo do feitio de instituições conservadoras. A partir da experiência do povo. Experiência convertida em lei pelas palavras de Alexander Hamilton e de James Madson.

Edmund Burke foi um filósofo irlandês (1729-1797). Ele se inseriu na linha dos conservadores europeus. Escreveu estudo clássico sobre a Revolução Francesa. Segundo Kirk, Burke é ponto de partida. A palavra conservador não fazia parte do vocabulário da política. Até quando admiradores franceses do estadista irlandês adaptaram a palavra para descrever os princípios. Princípios dos homens que desejavam acrescentar, ao que havia de melhor na antiga ordem europeia, as melhorias saudáveis e necessárias que poderiam preservar a continuidade da civilização.

Kirk relata que, certa vez, o então presidente Richard Nixon (1913-1994), na Casa Branca, lhe perguntou qual livro deveria ler. E ele respondeu: Notas para definição da Cultura, de T. S. Eliot.

– Por que ? indagou Nixon.

Kirk respondeu:

– Porque toca nas razões da decadência da sociedade moderna, na substituição de uma classe dirigente saudável por uma elite burocrática especializada. No contexto das relações que se deveriam manter entre os homens em postos públicos e homens de ideias. E no que vale a pena preservar na nossa cultura. Mais do que qualquer outro escritor no século XX. Eliot defendeu os costumes, a convenção, a continuidade na sociedade e a ordem moral da civilização.

Sobre decadência, Kirk refere a obra Decadência, uma Investigação Filosófica, do filósofo inglês Cyril E.M. Joad (1891-1953). Para Joad, certas características da sociedade decadente incluem: luxo, ceticismo, enfado, superstição, preocupação com o ego.

Mais adiante, Kirk acentua um trecho do discurso de Alexander Solj henitsyn (1918-2008) ao receber o prêmio Templeton, de 1983. O trecho é este: “Há mais de meio século, quando ainda era criança, recordo-me ter ouvido várias pessoas mais velhas oferecerem a seguinte explicação para os grandes desastres que se abateram sobre a Rússia: os homens se esqueceram de Deus, eis porque tudo isso aconteceu”.

Quanto ao regime democrático, Kirk entende que “democracia é uma condição da sociedade, não uma ideia moral. As formas políticas democráticas são meio de alcançar uma ordem civil tolerável. Mas essas formas não são o único meio que possibilita aos homens viver juntos em paz”. Para ele, “os fins de uma comunidade humana tolerável são a ordem, a justiça e a liberdade. A democracia, per se, não é o objetivo da existência humana. É um meio para alcançar esses três objetivos da ordem social civil”.

Como se vê, o chão histórico da direita norte-americana assenta sobre três raízes: costumes, experiência constitucional e religião. Os costumes estão na origem da cultura e dos modos de fazer da sociedade. Por sua vez, a experiência constitucional é processo entre insumo e produto. Meio pelo qual as normas são elaboradas a partir da prática social. E a religião é transcendência. Instância que traz moderação que refreia paixões. Portanto, há um eixo conservador sobre o qual funcionam três vias: cultura, institucionalidade e crença.

Muito bem. Até o governo Trump, o sistema político dos EUA operou baseado em três princípios: o respeito à lei, o respeito à Federação e o respeito aos Poderes da República. O respeito à lei significa considerar a autonomia do Federal Reserv e das universidades, por exemplo. O respeito à Federação significa não enviar tropas federais a estados-membros para resolver conflitos locais. E respeito aos Poderes da República significa trabalhar com freios e contrapesos de modo que os Poderes republicanos convivam harmonicamente.

A história norte-americana foi fiel a estes postulados. Até a gestão Trump. Produzindo admirado modelo de regime democrático. Figuras fulgurantes chegaram a elevar a cordilheira dos presidentes daquela nação: Abraham Lincoln, Franklin Roosevelt e Barack Obama.

Com o presidente Trump, o governo acentuou duas características: a primeira é a formação de oligarquia constituída por plutocratas do mundo digital. Que chegaram a ensaiar servil rapapé num jantar na Casa Branca. E a segunda característica é a baixa qualificação do nível geral da administração Trump. Seja do ponto de vista de formulação econômica, sem brilho e sem resultado. Seja do ponto de vista de preocupação social, sem projeto de inserção dos pobres no sistema de saúde. Seja do ponto de vista de expressão cultural, sem demostrar zelo com o soft power no cinema, teatro, museus, literatura e pintura.

Politicamente, o governo Trump é nacional-populista. Dá uma marcha ré institucional de um século. Voltando ao padrão dos anos de 1920. Quando o nacionalismo inflamou parte do povo europeu. E terminou estourando na Segunda Guerra Mundial. E quando o populismo esfacelou a linha programática, tornando os Partidos Políticos meros suportes de mitos que representaram destruição e morte. É esperar que a aurora traga o sol da lucidez.