Há algo de podre no reino de “O Rei Leão”, o desenho da Disney que agora retorna como filme. Dispensamo-nos aqui, com a cumplicidade de quem conhece essa já clássica produção, de fazer uma síntese do enredo ou de qualquer análise crítica e cinematográfica. Sugerimos apenas que “O Rei Leão” possa ser tomado como uma parábola para além, é claro, do inevitável maniqueísmo, tão presente nos filmes dedicados às crianças. Nesse sentido, aproveitamos para reprovar nomeadamente a contínua injeção de maniqueísmos às mentes infantis, como se as crianças fossem tão somente seres de pura simplicidade. Uma vez adultas, tenderão a repetir o simplismo primitivo que pais, mestres, livros, programas de TV e filmes terminaram por lhes incutir. Mas isso é outra história.
No filme, se bem atentarmos ao discurso (infelizmente não memorizamos algumas das sintomáticas falas dos dois principais antagonistas), há dois claros projetos de poder: o de Mufasa, projeto que já conhecemos “in media res”, e o do seu irmão, Scar, cuja fraternidade parece ter sido abalada não apenas no presente, quando Simba, o filho de Mufasa, é apresentado enquanto herdeiro, como num passado remoto (talvez não seja mera coincidência que Scar, “cicatriz” em inglês, seja o nome do maquiavélico antagonista), circunstância que de fato se apresenta sob o domínio do ciúme e da inveja. Ao equilíbrio apolíneo exaltado por Mufasa, sucede-se o dionisíaco do agônico e da tensão passional. Assim, logo nos achamos em terras shakespearianas.
O pequeno Simba, filho do assassinado Mufasa, é a seu modo uma espécie de Hamlet. Sobre sua alegre e terna juventude se abate a tragédia da morte do pai. Domina-lhe, não sem razão, mas por conta da ferida da orfandade, uma insegurança que só será superada pelo amor de Nala, a leoa com quem brincava na infância em seu período de latência (como diria Freud), e pela fé que, graças ao místico babuíno Rafiki, há de fazer com que ele retome a confiança em si mesmo e reconquiste o reino, a essa altura já dominado por outro projeto de poder.
A aliança do malévolo Scar com as terríveis hienas dizem bem do projeto de poder instaurado pelo golpe daquele, assassino do próprio irmão. Scar, como se sabe, guarda a culpa e o medo de ser descoberto em seus sujos segredos e, por isso mesmo, instaura um reino policialesco e autoritário, concedendo às cínicas e cruéis hienas um lugar de destaque em seu governo. Scar instaura uma “hybris”, uma desmedida, no equilíbrio antes priorizado por Mufasa. O que agora vale em todo o reino é o medo, a delação e o terror. A caça, por exemplo, antes regulada pela sabedoria de Mufasa, passa a ser um fomento à discórdia e, em seu paroxismo, a uma hobbesiana luta de todos contra todos. Será com catártica satisfação que acompanharemos, ao fim, o vilão ser devorado por suas cúmplices. As violentas e inescrupulosas hienas a rigor só estavam cuidando dos seus próprios interesses.
“O Rei Leão”, como se vê, volta numa hora em que as conservadoras hienas do mundo contemporâneo erguem as bandeiras do nacionalismo, da exclusão, da xenofobia e do racismo. Uma hora em que projetos liberais como o de Mufasa são atacados em nome de um generalizado desencanto e de uma irracionalidade que se vê a si mesma como portadora de futuro, mas que, como no efêmero (?) reino de Scar, é na verdade uma indutora de destruição, desigualdade, violência e morte. Um reino de medo, cuja rotina de infelicidade é fruto não de uma inclusiva expansão de bem-estar, mas de uma paranoia acima de todos.
Ao se aproximar de nosso imaginário com signos tão contemporâneos, o “Rei Leão” é também, “à la diable”, uma parábola moderna. Não por acaso é um filme despido de humor. Rimos pouco, e pouco riem os personagens. Entre rugidos do mal e rugidos para o bem, esse belo clássico também nos lembra que temos que dispensar e superar de alguma forma o viver sem preocupações (o “hakuna matata” da simpática e divertida dupla Timão e Pumba) para poder nos engajar e transformar a realidade, tentando reencontrar o sempre delicado equilíbrio perdido.
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