Fernando Dourado

A Confissão, 1838 de Giuseppe Molteni ( Recorte).

  1. Em 28 de outubro de 1969, eu estava com um pé fora do colégio São Luís, ali na avenida Rui Barbosa, num Recife já então banhado das cores de fim de ano. Meses antes, fora aceito no Ginásio de Aplicação, localizado na acanhada rua Nunes Machado, e lá passaria a funcionar meu novo endereço letivo de 1970 em diante, de frente a uma fábrica de guaraná sucateada, e dolorosamente distante dos gramados de futebol que amava, onde os vaga-lumes reluziam no lusco-fusco, e ainda assim perseguíamos uma bola de couro. Certo mesmo é que antes de me despedir de Dona Dulce, a melhor professora de que me lembro daqueles tempos, mandava a boa norma que fizesse a Primeira Comunhão. Para tanto, vínhamos frequentando na capela um curso de catecismo cuja mensagem não encontrava qualquer eco interno, mas que me distraía pelas ilustrações do livrinho cheio de anjos, halos de luzes filtradas e uma cantilena comentada sobre os Dez Mandamentos que, apesar de fáceis de decorar, se provariam de observância mais árdua como balizadores de vida. Não lembro ao certo de quem ministrava as aulas preparatórias, mas sei que houve uma espécie de ensaio para a cerimônia, mesmo porque a nave estaria lotada de familiares e um certo protocolo se impunha, para além das preocupações de mamãe com cabelos cortados, unhas aparadas e orelhas higienizadas com cotonete e óleo Johnson.

 

  1. Mas, ai de nós, nem tudo seria festa. Isso porque o rito da confissão era inerente ao processo. Para tanto, quase à véspera da data fatal, todos nós tínhamos escrito pequenas (ou grandes) listas com os pecados que havíamos cometido. A omissão de apenas uma escorregada, por irrelevante que a julgássemos, invalidaria o processo todo e estaríamos incorrendo em pecado mortal – aquele que ficava no andar de cima dos veniais, estes um pouco mais brandos. Comentava-se que no ano anterior, um aluno fora obrigado a rezar em contrição dez vezes o Padre Nosso e não menos de quinze vezes a Ave Maria. Não se falava de dosimetria, por certo, mas era um mistério estabelecer a correlação justa da pena que correspondia a cada infração. O instrutor batia muito na tecla do arrependimento. Se ele não fosse sincero, advertia, de nada valeria contar tudo. Mas como é que você podia arrepender-se de uma conduta que lhe parecera justa e adequada na hora que fora perpetrada? E o que fazer para que o remorso aflorasse? Deveríamos nos chicotear? Forçar o choro? De mais, quem garantia que depois dali eu resistiria à tentação de espreitar Terezinha no banho pelo buraco da fechadura, cuja chave eu jogara fora de caso pensado? “O dilema já é a pena”, disse meu primo, sempre à frente do tempo.

 

  1. Quanto à estratégia confessional, deveria começar pelos pecados mais brandos ou pelos mais graves? Qual o caminho mais prudente? Melhor talvez fosse testar a reação do padre pouco a pouco. A confissão deveria ser sempre na primeira pessoa, conforme mandava a regra. Minha lista era farta e se esgotava numa dúzia de quesitos. Eu batia no meu irmão menor injustamente, por puro abuso de força bruta. Comia escondido fatias de presunto na geladeira quando todos dormiam. Linchei Manuel Português na área de recreação simplesmente porque todo mundo estava fazendo o mesmo. Roubei descaradamente dois botões de chifre de boi de meu primo Euclides, na rua Barão de Itamaracá, desfalcando o time dele. Tirei mil cruzeiros da bolsa de mamãe para comprar um segundo saco de pipoca na hora do recreio. Humilhei uma menina chamada Jupuíra Garcia França, ainda no colégio Cônego Rochael de Medeiros, aos 7 anos, dizendo que ela era doida e imitando-lhe os grunhidos. Inventei que tinha dado um murro em Ricardo Lins, mas tinha sido só uma discussão, e agora eu já não sabia se tinha mesmo dado o murro ou só batido boca. Toquei na campainha de todos os apartamentos dos andares compreendidos entre o décimo-sexto andar até o primeiro, e fugi pelas escadas, mesmo sabendo que tinha gente doente no oitavo andar. Comi rápido o sanduíche de queijo da Casa Mattos só para ganhar um segundo. Brechava Terezinha nua toda tarde e enquanto a água escorria pelo seu corpo, eu me friccionava, ensandecido pela safadeza, como se alguma coisa quisesse sair de dentro de mim.

 

  1. Chegou o dia. Levei a lista no bolso e entrei numa sala que ficava ao lado da diretoria onde pontificava o irmão Armando Reis de Vasconcelos, que chegara da Bahia um ano antes, e que, segundo mamãe, tinha a caligrafia mais linda que ela já vira em todos os tempos. Quem me esperava lá para tomar a confissão era o padre Gabriel, um holandês alto, de fino cabelo claro numa cabeça tendendo à calvície, óculos de armação leve e munido de um sorriso que me pareceu desconcertante para uma ocasião punitiva. Visivelmente, ele já devia estar sabendo de alguma coisa. A impressão se reforçou quando eu desdobrei o rol amarfanhado de minhas mazelas. “Que papel é esse? Não, não precisa.” Gelei. E se ele me pedisse para lê-lo? Na verdade, estava tudo em código para me proteger de olhares estranhos, e tinha medo de eu próprio não entender o que constava dali. Mas a verdade é que o padre Gabriel sorriu, fez um gesto de desdém simpático e, sem batina nem Bíblia à vista, disse que só íamos mesmo bater um papo, conversar sobre o significado daquele momento na minha vida. Quanto ardil, pensei. E ao mesmo tempo, que alívio. Sem a lista, eu podia sempre pular alguma coisa, e já não seria condenado automaticamente ao inferno. Seriam só nódoas que a hóstia haveria de apagar.

 

  1. Então acho que baixei a cabeça e encadeei meus relatos. Nunca tive maior dificuldade de falar, apesar de ser um pouco gago, e de vez em quando levantava a vista para verificar a reação daquele homem em cujas mãos estava meu destino. Não há como negar, por outro lado, que a conduta dele tipificava uma espécie de anticlímax. Imaginava, e tremia, só de pensar se meu confessor fosse o padre Guedes, da rua capitão Lima. Certamente que seria dado por caso perdido, talvez recebesse até uma excomunhão avant a lettre, sei lá. “Você vai gostar dele. Holandeses são progressistas, não usam batina e passeiam de bicicleta entre os moinhos de vento e os campos de tulipa. Seja só você mesmo”, disse mamãe. Fazia sentido. Bastava ver o bem que eles tinham feito ao Recife. “Não fossem os canais que eles abriram, a cidade estaria sob a água, diluída feito um Sonrisal”, dissera papai depois da enchente em que eu vi um porco vivo ser levado pela correnteza diante de casa. “Maurício de Nassau foi um grande homem. Só evite ficar muito perto do padre, já vou avisando. Alguns deles gostam de menino”, arrematou. Mas quando menos esperei, o padre Gabriel deu a confissão por encerrada, me sugeriu um momento de recolhimento na igreja, que rezasse duas orações e foi tudo. Estava pronto para a Primeira Comunhão. Haveria outra um dia ou só reataria com o sacramento na Extrema-Unção, se tanto?

 

  1. O problema agora era operacional. Nem tanto pela indumentária que, para nós, era apenas a farda do colégio. As meninas das Damas é que se vestiam de anjo. Como único adereço, levávamos uma vela que compramos na rua da Concórdia, cuja base vinha abraçada por uma cinta de papelão para proteger os dedos da cera quente. Meu maior medo era o de, sem querer, morder o corpo de Cristo. Terezinha me dissera, com a condição de que nunca falasse isso para mamãe sob pena de suspensão de afagos e bolinações, que um menino em Igarassu tinha cravado o dente na hóstia. Na mesma hora, surgiu ao pé do altar, de uma nuvem de fumaça, a figura de um homem vermelho, de cavanhaque triangular e chifres curtinhos, que deu uma gargalhada tão estridente que a igreja ficou deserta e o padre teve um ataque apoplético, na tentativa de fazer Satanás (sim, era ele) se curvar diante da cruz. O cheiro era insuportável e quando os bombeiros chegaram, ele tinha sumido. Só um pai de santo aceitou a missão de limpar a igreja daquela maldição. Eu argumentei que tínhamos feito um treinamento com hóstia não-consagrada e bastava deixar que ela se dissolvesse na boca. Terezinha que era da umbanda, não recuou. “Mas aí era hóstia de mentira. Quero ver alguém morder a hóstia de verdade”. E pensar que eu ali estava diante de meu mais grave pecado, um pedaço de mulata de coxas roliças, os seios bamboleantes, o sorriso maroto, a ponta da língua provocadora. “Só tu mesmo pra achar que vai virar santo, visse“. Ela me tinha nas mãos. E eu morria de ciúmes de Cristóvão, o robusto entregador de gás com quem ela ia dançar nas tardes de domingo em Casa Amarela. Era pecado ter ciúmes?

 

  1. A cerimônia correu bem e foi bonita, como tudo o que acontece nas manhãs de sábado do Recife até hoje. Ainda lembro das músicas e cheguei a tomar banho cantando algumas delas. “O evangelho é a boa nova, que Jesus veio ao mundo anunciar“, para desespero de papai. Mamãe gritava do corredor: “Muito bem, meu filho, é isso mesmo, mas saia do chuveiro para poupar energia.” Acho que depois fomos almoçar no Galo de Ouro, onde eu comi o tradicional filé com arroz e fritas. “Quer um copinho de cerveja? Hoje pode”, disse papai. Mamãe proibiu. “Onde já se viu? O menino acaba de comungar.” Hoje percebo que a intenção dele era a de varrer qualquer vocação para beato que a Primeira Comunhão pudesse inocular. De qualquer forma, eu já tinha provado uns restos de cerveja em fim de festa e tinha achado ruim e amarga. Teria muitos anos para rever conceitos. E depois? Depois a vida retomou. A cerimônia ficou a cargo do padre Gabriel e acredito que nunca mais o vi desde então. Nos dias seguintes, reatei com meu rosário de pecados, cada dia mais graves. Nunca mais reli o missal, o tercinho branco que ganhara de minha tia ficou numa gaveta, nunca me benzi ao entrar nas igrejas – nem muito menos ao passar pela porta, como fazia muito adulto naquele tempo. “Um filho ateu, que desgosto. Tudo culpa de seu pai. A religião é um freio, uma necessidade. Se ele tivesse tido uma…”, dizia mamãe. Se a coisa ficasse feia mesmo, poderia sempre tentar uma confissão com um padre anônimo, já que agora estava habilitado. Meus primos do interior pediam a benção a seus pais, como se estes fossem sacerdotes. Lá em casa, essa prática não tinha prosperado. “Coisa de matuto”, dizia papai.

 

  1. No Aplicação, a religião não era tema, digamos assim. Uma vez por semana, tínhamos um bate-papo com o professor Augusto Burle, que se locomovia lentamente. Criança, tivera uma paralisia que o forçara a uma recuperação titânica, a ponto de voltar a andar. Cada passo era uma conquista. Circulava pela cidade numa motoneta adaptada e dizia-se que tinha um maravilhoso orquidário em Aldeia. A aula era facultativa – as protestantes e uma judia se ausentavam -, e ele tentava nos tirar da esfera do “achismo” com alguns conceitos que bordejavam a teologia e a filosofia. A impressão que eu tinha era que ele aprendera a ser muito agradecido a um ser superior, o que quer que isso significasse. Falava com entusiasmo da esposa e do filho, que viria a estudar conosco mais adiante. Ora, para quem viera ao mundo com uma deficiência tão grave, havia dois caminhos: xingar o criador ou ser-lhe grato. Visivelmente, ele optara pela segunda via. Uma vez nosso colega Hélio quis rebuscar uma pergunta e, na procura desesperada por um exemplo, perguntou sobre a perna deficiente do professor Augusto. Ele acendeu um cigarro, riu o riso nervoso de quem só apendera a fazê-lo depois de adulto, e disse que a analogia certamente não era muito feliz. Ali ele fixou um limite para sua intimidade, o que não fazia quanto a outros temas. Lembro até que falou uma vez do “cansaço gostoso” que as pessoas sentiam depois do ato sexual. Achei aquilo quase obsceno, mas intrigante. Pensei nele muitas vezes na minha modesta vida de alcova.

 

  1. E então transcorreu meio-século. Sim, quase 50 longos anos. E fiz um comentário no Facebook sobre o dia terrível em que, ainda no São Luís, eu soubera do sequestro e morte do padre Antônio Henrique Pereira Neto. Ato contínuo, postei uma foto do enterro que, na época, mereceu uma matéria explosiva de Ivanildo Sampaio, que lhe custou (ou deveria dizer valeu?) um exílio dourado no Rio de Janeiro, sob os auspícios do ucraniano Adolfo Bloch, este também versado em “pogroms” e terror. Na foto, o amigo Sérgio Freitas de Almeida destacou a figura do padre Gabriel, que logo reconheci entre os padres paramentados que cercavam o féretro, nas alamedas do cemitério da Várzea. Então lembrei de meu confessor. Sim, era ele, o rasga-listas. Ou seja, quando da Primeira Comunhão, apenas 5 meses antes ele estivera ali, lado a lado dos que desafiavam as proibições, sob a condução de Dom Hélder, de quem era amigo. Fiz breve alusão a seu nome. E foi então que outro amigo, num desses lances de extrema felicidade e coincidência que compensam a platitude temática das redes sociais, deu uma boa notícia, mas que também embutia uma ruim. Sem me dar chance de dizer qual de ambas queria ouvir antes, anunciou que o padre decidira voltar para Pernambuco em 2019. Para Garanhuns, mais especificamente, aos seus 86 anos. Mas que…

 

  1. …mas que lá morrera há dias, nesta primeira semana de agosto de 2019. Então me mandou uma foto, tirada no aeroporto do Recife. Nela o padre Gabriel era conduzido numa cadeira de rodas e parecia sorrir, quase feliz, não fosse ter que dar trabalho ao rapaz que o empurrava. Sem legendas, Luiz Antônio Coelho de Andrade, o portador das boas (e nem tão boas) novas, disse que o sacerdote resolvera vir para Garanhuns para morrer pois era lá que queria ser enterrado. Que este fora, por assim dizer, seu último desejo. Um detalhe se sobrepôs à emoção: o sobrenome do padre era Hofstede. Teria ele algum parentesco com meu mentor Geert Hofstede, o autor de “Cultures and organizations”, o livro que consolidou com a serenidade dos sábios minha percepção sobre as mudanças do universo corporativo, ainda nos anos 1990, quando isso me interessava tanto? Será, portanto, que dois homens da mesma família, oriundos de um país diminuto, e por razões ligadas a meus dilemas mais fecundos, tinham laços de sangue entre si? Era provável. Mas isso veio depois. Na hora, fui sacudido por outras reverberações. Ora, como é que se troca um enterro na Holanda por um túmulo em Garanhuns? Era por certo uma indagação ridícula. Na verdade, o morto é problema dos vivos e, no fundo, tanto fazia. Não é assim que dizem? Mas será?

 

  1. Algo deve querer dizer o fato de as pessoas expressarem a vontade de ser enterradas em determinado lugar, aqui ou acolá. Se assim não fosse, o padre Gabriel poderia perfeitamente ficar onde estava e, quem sabe, repousar ao lado de sua mãe – padres e modistas costumam gostar muito das mães, segundo dizia papai -, de seus familiares, de seus colegas de juventude, à beira de um canal limpinho, num cemitério colorido por tulipas de todas as cores, onde vândalos jamais iriam urinar sobre as lápides e onde saqueadores jamais iriam se dar ao trabalho de escarafunchar esqueletos à procura de obturações de ouro. E, no entanto, ele quis ir para Garanhuns, onde passou parte de sua vida missionária. Logo lá, uma cidade mundialmente famosa, quase amaldiçoada, por conta de Hosana, o padre tresloucado que assassinou o bispo cearense Dom Expedito Lopes, na mesma semana em que eu e minhas primas gêmeas fomos concebidos, nascendo exatos nove meses mais tarde. Quando perguntei à minha mãe e minha tia se elas achavam que o crime tinha contribuído para a ovulação de ambas, elas me olharam com um estupor que jamais esquecerei. Sim, eu não precisava de resposta. A morte chama a vida. A unção da escolha do padre Gabriel era quase um perdão ao torrão para muitos maldito. De mais, padre Gabriel vivera no Vaticano nos tempos de João XXIII, época em que a barbárie explodiu nas mãos do raivoso pároco de Quipapá.

 

  1. Fui então ao Youtube e achei as cenas do enterro do padre Gabriel Hofstede em Garanhuns, ao lado de meus antepassados. De avós, tio, tia e primo. Como são sumários os ritos de enterro nos tempos de hoje. O vídeo durou 5 minutos. O cortejo com seis padres paramentados entrou com o caixão. Algumas pessoas aplaudiram. Posto no chão, um prelado puxou as rezas e os cânticos por três minutos. Alguém gritou: “Viva o padre Gabriel.” Todos aplaudiram. Eram muitas as coroas de flores trazidas pelo alto, de mão em mão, até o esquife. E pronto. O resto ficou para os coveiros, a briosa brigada de tijolos e cimento fresco. Dali todos retomaram a vida, imaginei. E lá estará deitado o padre Gabriel, o homem que dispensou com um gesto minha lista de pecados, e que optou por viver e morrer entre os meus. Enquanto eu, por razões obscuras, já que é inevitável morrer, muitas vezes sonho em ser enterrado entre os dele, lá na Europa. Só que há uma diferença frontal entre nossos desejos, digamos assim. Ele quis se acercar daqueles com quem viveu e a quem serviu. Já eu, destes quero distância. O que concluir? Que o padre era uma alma superior. Era isso que ele queria dizer ao repetir tantas vezes o “renascer em Cristo e por Cristo?” Só faltava eu virar beato a essa altura. Aí quem se revolveria onde está seria papai. Antes que esqueça, somo minha voz à de meus conterrâneos e grito: viva o padre Gabriel.