Fernando Dourado

Bolsonaro sofre atentando em Juiz de Fora – 6 de setembro de 2019.

Setembro de 2018 foi um mês magnífico. Olhando em retrospectiva, o que mais lhe conferiu sal e pimenta foi o fato de que durante as três semanas que passei em Chicago, conheci as emoções fecundas e ambíguas de testar os meus limites – para o melhor e para o pior. No primeiro grupo, exultei com a rotina que se estabeleceu, toda ela voltada para escrever meu novo livro. Antes de chegar, tinha mentalizado passar a temporada na casa dos filhos de meu primo, em Elmwood Park, a cujo ramerrão estava aclimatado, e onde já ficara outras vezes. Sonhava em adormecer com o apito do trem cuja composição gigantesca cruzava a estação próxima ao imenso silo, rumo ao Canadá. Quando o avião manobrou sobre o lago Michigan em direção à cabeceira de O´Hare, e vi ao longe o perfil dos tantos edifícios de referência do centro da cidade, logo também me vi desembarcando na Union Station, toda manhã de segunda a sexta-feira, caminhando até o “loop” e descendo na estação da biblioteca, onde passaria o dia teclando e pensando, na tentativa de entrar na pele dos personagens que ali ganhariam forma. Surpreenderia meu orientador literário e ele não se arrependeria de ter aceitado gastar tempo comigo.

Não posso negar que as coisas transcorreram em boa parte assim. A surpresa ficou por conta de meu primo que me esperava no aeroporto. “Você vai ficar dessa vez na minha casa, rapaz. E nem vai sentir falta de Elmwood Park. Moramos em Skopje, que é um subúrbio muito mais transado, você vai ver. A vizinhança não será a de poloneses e italianos, mas de judeus, desses que vão às festas com aqueles chapéus de pele. E depois, temos metrô bem à porta, o que vai facilitar sua vida para ir até o centro dar suas caminhadas.” Ainda fiquei meio hesitante. Afinal, ele morava com a esposa e a filha, ou seja, numa casa de predominância feminina, o que é sempre um problema para um sujeito desacostumado a fazer concessões no espaço doméstico como me tornei. Já em Elmwood Park, os dois filhos estavam sempre cercados de primos e a casa tinha a feição de república boemia que tanto me agradava. Mas bastou bater os olhos em Skopje para que sentisse que passaria bons momentos por ali. O pico do verão já ficara para trás, e tanto meu primo quanto a esposa e filha, passavam a maior parte do dia fora. A falta de rituais de convívio doméstico é sempre uma boa notícia para um lobo fugidio como eu, que lambe a solidão como uma gazela afaga o filhote.

No capítulo das desditas, já que me referi a elas, tudo o que me atingiu de grave foi uma terrível dor de coluna, que ainda não foi diagnosticada a sério até hoje, um ano depois. O que sei é que adorei o quarto com que fui distinguido. Aconchegante, quase de frente para o banheiro do corredor – o que me permitiria uma escapada em trajes menores no meio da noite -, ali até a cama me pareceu deliciosa. Afinal, estava em Chicago, em casa de familiares queridos, com tudo bem à mão. Faltou atentar, contudo, para que sobre o colchão e embaixo dos lençóis, jazia uma camada de um palmo de pura espuma, que, dia após dia, estava conspirando para me pregar uma bela peça. Assim, digamos que das vinte e algumas noites que lá fiquei, comecei a acordar meio torto na quarta. Na sétima, travei de vez e cheguei a levar 15 minutos contados de negociação com a dor, até achar uma posição para ficar de pé – quando só então tudo melhorava. Mas não haveria exagero em dizer que até remover dali a tal camada de espuma, por vários dias me apavorava a possibilidade de não me levantar de jeito nenhum, mesmo com analgésico na cabeceira. Retirada, tudo foi voltando ao normal embora saiba que jamais me levantarei como antes. Mas o que é que ainda funciona como antes, que mal o pergunte?

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Puxado pela toga, bastou um átimo para Júlio César se aperceber de que caíra numa cilada no Senado romano. Esfaqueado 23 vezes, tombou diante da estátua de Pompeu, e nunca houve consenso entre Plutarco e Suetônio se teria mesmo dito a famosa frase ao filho Brutus, o rebento que tivera com Servilia. Minutos depois, três escravos o colocaram sobre uma liteira. Morte menos agônica coube a Abraham Lincoln, no camarote presidencial do teatro Ford, em Washington, em 1865, perpetrada pela mão de um ator inconformado com a derrota sulista. Seu nome era John Wilkes Booth, que desferiu-lhe um único tiro mortal com uma Derringer 44. Nos dois casos, morressem violentamente ou na paz dos lares, a História já os guindara ao panteão. 

Nesse contexto, há de se visitar os palcos sombrios onde aconteceram alguns assassinatos. Se já não é possível percorrer a cozinha do hotel Ambassador onde na primavera de 1968 o jordaniano Sirhan Sirhan alvejou Bobby Kennedy, o visitante ainda capta os ecos dos tiros que Lee Oswald disparou contra John Kennedy, no outono de 1963, à saída da rua Elm, no coração de Dallas. Desatento até então ao depósito de livros de onde partiram as balas, o mundo permanece mesmerizado com a cena em que Jackie tentava amparar o crânio bamboleante do marido no regaço de um tailleur cor de rosa. 

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Um ano mais tarde, nestes primeiros dias de setembro de 2019, lembro de minha alegria ao sair de casa lá pelas 9 da manhã e caminhar até a estação de metrô de superfície que, ao cabo de uns 40 minutos, me deixava no “loop”. Antes de pegar o trem, comprava um “Chicago Tribune”, que já foi bem mais gordinho, e passava o trajeto a alternar a leitura com a paisagem. De tanto fazer a mesma linha, passando na volta ao lado do estádio de Wrigley Field, via torcedores de beisebol empolgados, gente de todas as idades a caminho dos carros que deixavam nos estacionamentos de subúrbio. Chegando à biblioteca, pegava um chá gelado e subia para o mesmo canto onde, ao cabo de um par de dias, as pessoas passavam a me cumprimentar. “Hey, how are you doing today?” Quando queria um endereço mais mundano, ia até a livraria Barnes & Noble, ali perto, e aproveitava para folhear os lançamentos e até para fazer pesquisas, se porventura quisesse saber mais sobre um tópico específico. Em função de meus escritos, estava particularmente interessado na evacuação dos judeus da Hungria em 1944, na famosa operação capitaneada por Eichmann, numa demonstração de pavorosa eficiência.

Nada se comparava, no entanto, a me sentir fértil, digamos assim. Quando fechava o computador, depois das 7 da noite, ainda havia luz solar até a primeira parte da temporada. Então voltava para casa e, chegando lá, ficava sozinho por mais um par de horas. Meu primo e a esposa trabalhavam até mais tarde. A filha deles também tinha faculdade à noite, o que me permitia preparar um espaguete, tomar um chuveiro e me servir de um copo de vinho. Então sentava e avaliava o plano de trabalho para o dia seguinte. Será que conseguiria escrever mais um capítulo? Seria possível manter aquele ritmo alucinante e aproveitar o momento enquanto todos os personagens estavam tão vivos na minha cabeça? Que fosse adiante, que deixasse a história me conduzir, a certa altura a inspiração haveria de estancar. Tudo era tão absorvente que eu chegava a sentir constrangimento. À mera pergunta de “como foi o dia?” que meu primo fazia, eu me saía com uma tirada de dez minutos em que lhe iniciava nos labirintos misteriosos da ficção, adiantando-lhe parte da história que, para ele, não devia fazer grande sentido. Certamente ele colocava tudo na minha infindável cota de esquisitices. Quando o via bocejar, invertia a pergunta e saíamos da bolha, o que também me distraía. Afinal, ele estava começando vida nova aos 60 anos, num país onde nunca vivera.

Mesmo assim, quando meu primo se recolhia, muitas vezes eu ia para a cabeceira da mesa de jantar e continuava teclando como se estivesse tomado por um transe. Conseguira, afinal, a fórmula perfeita. Tinha uma casa em que a vida palpitava, mas que não dependia de mim para funcionar. Tinha uma família que era a minha, mas que me dava toda a autonomia do mundo para fazer meus horários, e aceitava minha limitada vocação para o convívio. Skopjke era um bairro delicioso e, a meia hora de caminhada, havia muita alternativa de restaurante, parque, livraria e até cinema. A proximidade das Grandes Festas do calendário judaico trazia um clima especial às ruas arborizadas e o entardecer era sempre bonito, com faixas escarlates sobre o horizonte. Eu poderia viver daquele jeito pelo resto da vida e seria o mais feliz dos homens. Mas por saber que isso não era possível, tinha que aproveitar o tempo o máximo que pudesse. De vez em quando fazia uma contagem regressiva e me desesperava. Mas, pensando bem, o tempo restante ainda se contava em semanas. Chegando ao Brasil, tudo indicava que teria que retomar meus compromissos com a política, que vivia dias palpitantes.

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Estadistas sem estado também podem pagar preço alto pelo ativismo político. De novo, podemos alternar palcos de homicídios em busca de pistas que ecoem o Zeitgeist reinante. James Earl Gray fulminou com um rifle Remington o reverendo Martin Luther King Jr., que saía do quarto 308 do modesto motel Lorraine, em Memphis, Tennessee. Um contraponto viria do Paraguai, em setembro de 1980, no cadáver desfigurado de Anastasio Somoza, fulminado na então avenida Generalísimo Franco, a bordo de seu Mercedes branco, por uma carga de trinta tiros de fuzil de assalto M-19, depois que uma bazuca RPG-2, de fabricação chinesa, falhou no ombro do sicário. De Memphis ressoa o sonho do pregador em inspiradora peça de oratória. Já em Assunção, o destino acertava contas com um caudilho bananeiro, albergado por outro — este de nosso convívio cercano.    

Por recender aos ares da Europa austro-húngara em toda a mística daquela zona singular de fratura civilizacional, talvez nenhum lugar cale tanto na alma do curioso quanto a pequenina ponte Latina, no coração de Sarajevo. Frustrada a tentativa de assassinato do arquiduque, e dispersado o núcleo sérvio de conspiradores, eis que o motorista de Franz Ferdinand estaca diante da ponte para fugir do tumulto. É lá que Gavrilo Princip se vê a poucos metros do alvo do grupo Mão Negra. Muito jovem, confessaria ter-se apiedado da vítima quando a ouviu dizer à esposa: “Sophie, fique viva para cuidar das crianças”. Mas ambos morreram. Os corpos foram transportados para Trieste por mar e embebeu-se em pólvora a mecha que detonaria a Primeira Guerra Mundial. 

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Não conheço Chicago no auge do outono, o momento em que deve ser mais sedutora, especialmente naqueles subúrbios onde estava, que também compõem os encantos da cidade. Conheço-a no inverno e lembro particularmente do Natal de 2008 quando mal dava para andar duzentos metros pela avenida Michigan sem recorrer a um café, um bar, um átrio de prédio comercial, o que fosse, para suportar outro tantinho de caminhada. A região praiana, onde no verão moças e rapazes jogam voleibol e comemoram um ponto como se fossem cheer leaders, na virada do ano era só uma camada de gelo que se estendia sobre boa faixa da água, e as margens dormiam sob espesso cobertor de neve. E é claro, conhecia-a bem de alguns verões, quando meu caso de amor com a cidade tomou forma graças ao convite que então me fizeram os filhos de meu primo para ficar uns dias com eles, e assessorá-los em negociações que aconteceriam dentro de uma semana na Filadélfia. Até então, pois, eu era jejuno de Chicago, o que francamente me incomodava. Hoje prefiro-a a Los Angeles, San Francisco e Boston, embora Nova York ainda tenha primazia entre as grandes. Atlanta é sem alma e Miami não tem matriz anglo-saxã, daí que, na categoria, prefiro Bogotá.

A primeira temporada, aquela de 2007, tivera algumas consequências, ou pelo menos ameaçara ter. Ou se teve, até hoje não sei. Explico-me. Certo dia quando fotografava o silo ao lado da estação, uma moça me abordou e perguntou em inglês ginasiano se era dali que se tomava o trem para a cidade. Era polonesa, tinha talvez uns 30 anos, um filho de 8, e viera de Szczecin, ou Stetten em alemão, no Báltico, para passar um mês de férias em casa de familiares. Não nego que era bonita e agradável. Acompanhei-a. Da Union Station, levei-a até o estádio Soldier Field, que ela tinha interesse de conhecer, e depois convidei-a para almoçar num italiano sobre o rio, de cujo terraço se via a algaravia dos turistas acenando para quem os contemplava das pontes. Acho que esses encontros se repetiram por mais um par de dias, mas um dos dois precisava viajar, acho que era eu no caso, mesmo porque fora para atender a um compromisso profissional. No calor das despedidas, conforme vim a saber ao telefone meses depois, soube que ela engravidara. O que poderia dizer? Que se tivesse restrição de fazer o necessário na Polônia, o berço do catolicismo, atravessasse a fronteira que não teria entraves na Alemanha. E que eu a ajudaria financeiramente para tal. Ela me bateu o telefone e nunca mais a localizei. Embora tenha tentado várias vezes encontrá-la, só ou com mais uma criaturinha, até mesmo em Szczecin, na Prússia ocidental. É o eterno dilema masculino.

Voltando a setembro de 2018, minha grande preocupação era o que se passaria com a candidatura de Alckmin. Eu fora voto vencido em minhas proposições em diversas instâncias, inclusive na renitência de que ele precisava usar de sua autoridade moral para conter os avanços de João Doria sobre a máquina partidária, e que, já em dezembro de 2017, com o conluio de apparatchiksnada ortodoxos, dava sinais de que pretendia renunciar à prefeitura de São Paulo e se candidatar a governador. Geraldo não teve força para fazer prevalecer sua preferência assumida por Luiz Felipe d´Ávila, minha aposta, e terminou por se apequenar, sob a alegação interna de que o melhor candidato era aquele que servisse à sua escalada presidencial. Terminamos o Plano de Governo e só um sujeito da envergadura de Felipe faria o que fez: esmagado na convenção viciada, entregou-o a Doria com um abraço e votos de sucesso. Ainda assim, com a possibilidade crescente de Doria ganhar, a despeito de suas muitas limitações como gestor – evidenciadas na prefeitura – e do desgaste pela renúncia, Geraldo fechara acordo com o Centrão e tínhamos tudo para chegar ao segundo turno na presidencial, ainda que um pouco apertados. Chegando lá, ganharíamos de qualquer oponente em função da baixa rejeição do picolé de chuchu.

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Outros crimes podem não ter resultado em deflagrações tão determinantes, mas causaram traumas profundos. Desde a noite de 28 de fevereiro em 1986 até hoje quem passa pela Sveavägen, centro de Estocolmo, indaga o que teria motivado um assassinato tão estúpido, bem à saída do cinema Grand. O que dera pois de errado na utopia social-democrata de Olof Palme? Em 4 de novembro de 1995, outro choque de grandes proporções foi o assassinato de Yitzhack Rabin pelo fanático Yigal Amir, em plena praça Reis de Israel, em Telavive, um fundamentalista de olhar vítreo que nunca confessou arrependimento por contrariar a cláusula pétrea das querelas entre judeus — a de que um jamais matará o outro. 

Poderíamos percorrer a genealogia de assassinatos de figuras tão díspares quanto Sadat, Nicolau II e Marat. De outras mais afins, como Indira Gandhi, assassinada por guardas siques e, anos mais tarde, seu filho Rajiv, pelas mãos de terroristas tâmeis. Mas não será deslindando motivações do terror em estado puro, das vendetas ditas revolucionárias ou dos labirintos multiétnicos que chegaremos à rua Halfeld, pouco depois das 15 horas do dia 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora, a outrora “Manchester mineira”. Que brasileiro não sabe o que estava fazendo a essa hora aziaga, quando os serviços médicos se mobilizavam para arrancar da morte o candidato Bolsonaro, em plena campanha? 

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Eu evitava falar de política com meu primo. É verdade que ela sempre fora um tópico caro à família, mas eu e ele nitidamente jamais tínhamos sido muito afinados nesse terreno, mesmo quando éramos estudantes e frequentávamos a casa de Fernando Henrique Cardoso, em Cambridge, em 1977. Sem precisar ir muito ao passado, enquanto ele professava uma linha mais conservadora, alinhada com os legítimos interesses de honrados comerciantes de Garanhuns, de quem descendia por parte de pai, eu já era uma voz dissidente. Morando no Recife e tendo sido impregnado por uma tradição política progressista, para usar um termo que em Pernambuco é temerário, eu sempre fui visto por ele como um socialista bon vivant – certamente o perfil mais execrável e sibilino das esquerdas brandas, a chamada gauche caviar, o que me diverte até hoje. Mesmo assim, a despeito de minha vontade de passar ao largo desses temas, como evitá-los, se ele estava morando lá há dois anos, se amava o Brasil (mais do que eu) e se via com esperanças a possibilidade que eu desdenhava, quando não abominava, qual seja a de ver Jair Bolsonaro ir ao segundo turno e levar a coroa? Eu cheguei a dizer claramente, para sua grande indignação, que considerava os bolsonaristas elementos tão envenenados e patológicos quanto os petistas, e que, portanto, ambos eram portadores de material genético tóxico para elevar o debate político no Brasil e no mundo.

Naquela quinta-feira, 6 de setembro, lembro que meu primo saiu cedo e voltou para almoçar. Como eu precisava fazer o texto que batizei de “Dor e luz” para a “Será?”, resolvi que não iria à biblioteca naquela manhã. A concentração era tanta que temi desaquecer durante o trajeto. De mais, tinha ali onde estava tudo de que precisava. Empolgava-me em especial a máquina de fazer café que eu aprendera a manusear e, como eu viria a perceber mais tarde, certamente foi o abuso de cafeína um dos grandes responsáveis pela energia descomunal que me movia, e pelas poucas horas de sono com que me contentava. Devia ser pouco mais de 13 horas em Chicago e meu primo cochilava no sofá com a televisão ligada, vendo uma reprise de novela. Na véspera, tínhamos encerrado a discussão abruptamente porque eu me irritara com uma pergunta capciosa que ele fizera, de tão vaga: o que foi que o PSDB fezpelo Brasil? O que foi que Alckmin fez? Como se uma obra de 30 anos pudesse ser medida como a performance de um jogador que víssemos atuar no campo de futebol. De repente, li no Twitter que algo grave acontecera em Juiz de Fora. E então fiz um barulho proposital para que ele despertasse do sono leve. “Bicho, esfaquearam teu candidato. Se ele não morrer, está eleito. Parabéns.”

Não sei se porque estava ainda um pouco sonado, ou se achava que aquilo integrava as provocações que eu vinha fazendo desde a véspera, ele se achegou à mesa e se posicionou de forma a poder ver a tela de meu computador. “Tásconversando, rapaz?” Então, caiu a ficha. Como estávamos atrás do fuso horário brasileiro, às 14 horas da tarde locais, a tarde já chegara ao fim em Juiz de Fora. Foi então que apareceu a imagem do pobre diabo que perpetrara aquela insanidade. Fui taxativo: “Numa hipótese boa, esse tal de Adélio Bispo é esquizofrênico.” Meu primo balançou o dedo. “Tásconversando, rapaz? O cara só embarca numa missão suicida dessa se está guiado por alguém poderoso. É um crime político, isso é evidente. E dá até para imaginar quem foi que o encomendou.” Ali eu senti por onde iria a narrativa da candidatura afinal ganhadora. Poupado de debates, livre de aparições pessoais que não fosse pelas bandeiras e faixas de sua militância no exíguo horário político, eis uma chance caída do céu para ocultar as fragilidades e o candente despreparo de Bolsonaro. Teria dali em diante amplo horário editorial de graça. Os adversários fariam uma trégua, a começar pelo obsequioso Geraldo, e, por pudor, sequer aventariam a hipótese de que aquilo pudesse ser uma resultante infeliz, embora óbvia, do discurso do ódio, uma de suas marcas.

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Naquele dia eu abri mão de uma jornada na biblioteca de Chicago e preferi trabalhar em casa, no subúrbio de Skopje. Já à tarde, a despeito do fuso horário, comentava-se o perfil de um pobre-diabo de nome Adélio Bispo. Para quem vem de uma cidade que se notabilizou pelo assassinato de um bispo por um vigário — o padre Hosana que alvejou em Garanhuns o sobralense dom Expedito Lopes —, eis que a mixórdia de fatos e versões que chegavam tudo comprovava, salvo que o Bispo que atentara contra o Messias era, a olhos vistos, pessoa seriamente perturbada, versão que os bolsonaristas nunca encamparam pois melhor convinha à narrativa vitimista dar ares de complô ao crime brutal e lamentável. 

Mas os crimes trazem sempre algo uns dos outros, como que elementos neurais a soldar uma pretensa mitologia. O que concluir pois sobre o crime da rua Halfeld? Que Adélio Bispo era uma mistura mal combinada de Gavrilo, Sirhan Sirhan e Amir? Em que medida o óbito do candidato teria mudado nossa história? Teria Israel caído em mãos radicais depois da morte de Rabin? Teríamos um Bobby que desfraldasse as bandeiras do irmão assassinado e, na falta deste, um Ted Kennedy, já que Bolsonaro tinha 3 filhos em idade eleitoral? Enfim, teria o atual presidente ganhado a eleição sem o ataque vil na rua Halfeld? Jamais saberemos. Mas quem escrever a história do Brasil dentro de um século, e se debruçar sobre os desdobramentos do discurso político, concluirá que o atentado de Juiz de Fora foi terrível. 

Epílogo

Nada voltaria a ser como antes no retorno. Na sede da campanha, onde eu desembarcara um ano antes, em outubro de 2017, já não havia lugar para a esperança. Inventariar erros e desacertos é próprio de outras idades e de outras culturas, e certamente eu não me enquadrava em nenhuma delas. Tudo o que eu queria àquela altura era retomar meu livro, e limpar o ambiente dos ruídos que me chegavam do insano debate eleitoral durante a curta campanha de segundo turno que logo começaria, e que já não nos dizia respeito. Não, decididamente não desperdiçaria meu precioso tempo nos bares de São Paulo, repisando as crônicas de um ano na política. O destino do Brasil fora selado naquela facada e ela teria impacto sobre os próximos anos, talvez até sobre os que me restam. Desconfortável com o ambiente, concluí que só reataria com meu livro àquele ritmo trepidante se deixasse tudo para trás e fosse para Estrasburgo, onde tinha quase todos os elementos que encontrara em Chicago, num ambiente talvez até mais propício à produção intelectual. Entre idas e vindas, ficaria na Alsácia quase dois meses até o fim do ano. Mas nunca mais consegui reatar com meu projeto original, muito menos ao ritmo a que ele obedecera – 20 capítulos de 32 concluídos lá, e, talvez, apenas mais 2 escritos desde então até hoje. Como explicar? É o que tentarei fazer da única forma possível: aceitando a criação literária como ela é e recomeçando. A pulsão criativa, vou lá eu saber, poderia decorrer de uma conjunção de fatores que, por ser indetectáveis, se combinavam à minha revelia. Os lapsos de tempo que se desenovelariam antes de depois de um certo dia de setembro em Juiz de Fora eram, por definição, irrepetíveis. No fundo, o que me movia era a sinistrose de fim de mundo.