No dia de 31 de dezembro de 2019, com transmissão direta para todo o País, a Caixa Econômica Federal realizou o sorteio da “Mega da Virada”, que iria distribuir um prêmio de R$ 304.213.838,64 a quem acertasse os seis números daquele concurso. Esse montante representava apenas 43% do valor arrecadado, os outros 57% ficariam com a instituição. Quatro jogos foram acertadores, e cada felizardo levou pra casa um prêmio de R$ 76.053,459,66. Jogos de qualquer espécie são legalmente proibidos no Brasil, mas não para a Caixa, que também não admite concorrentes. A Mega Sena é apenas um dos oito jogos que diariamente a Caixa Econômica promove, pois, além da centenária Loteria Federal, com sorteios duas vezes na semana, joga-se também na Loteca, na Quina, na Dupla Sena, na Timemania, na Lotofácil e no Dia de Sorte. Em todos eles, a Caixa abocanha mais de 55% do valor arrecadado. Pergunta-se: para onde está indo essa “montanha” de dinheiro? Onde está sendo empregado volume tão expressivo de recursos, grande parte oriunda das camadas mais baixas da sociedade, que, relegada ao esquecimento pelo poder público, alimenta o sonho de um dia acertar na “sorte grande”? Parte desse dinheiro não deveria, com toda a justiça, estar sendo carreada para ajudar no combate ao coronavírus? Por que a Caixa se mantém em rigoroso silêncio a esse respeito? Por que o Congresso Nacional não se movimenta? Onde anda a “bancada do jogo”, tão atuante em defesa da sua legalização, mas tão silenciosa diante dessa pandemia? O Governo, até por decência, está obrigado a abrir essa “caixa preta” das loterias e dizer por qual razão não usa os bilhões que arrecada, para comprar respiradores, instalar hospitais de campanha, contratar médicos, enfermeiros e profissionais de saúde, no combate à maior pandemia jamais vista desde os tempos do descobrimento.
O “jogo-do-bicho” é uma invenção genuinamente brasileira, criada pelo Barão de Drummond para ajudar a manter o Jardim Zoológico no Rio de Janeiro. Venda de bilhetes lotéricos existe no Brasil desde os primeiros anos da República, mas os modernos volantes de Jogos de Loteria foram implantados no Brasil em abril de 1970, na gestão de Emílio Garrastazu Medici. Acompanhei, como repórter, os primeiros sorteios. Na época, era apenas a chamada “Loteca”, onde o apostador precisava acertar o resultado de 13 jogos de futebol, com os times escolhidos, tanto nos campeonatos nacionais, quanto em partidas internacionais. Foi essa “Loteca” que tornou conhecido nacionalmente um jovem suburbano carioca, chamado Eduardo Varela, que, em maio de 1972, ganhou um prêmio de 12 milhões de cruzeiros, a moeda da época, recebendo na imprensa o apelido de “Dudu dos Milhões”. Empolgado na condição de “novo rico” e muito mal orientado, Dudu não demorou muito para jogar fora quase toda aquela fortuna. (Depois de deixar a revista Manchete, onde fiquei por seis anos, trabalhei, no Rio de Janeiro, numa agência de comunicação que se propunha a produzir um documentário sobre “Dudu”, com direção de Alcino Diniz. A pesquisa sobre sua história ficaria a meu cargo. Deixei a agência antes de o projeto ser iniciado, e nunca soube se esse documentário foi realizado. Creio que não, pois ainda hoje guardo comigo parte do material que apurei para aquele trabalho).
Em 1978, o jornalista Ivo Patarra, da Revista Repórter, criação da Editora Três, que reunia uma equipe extremamente talentosa – Caco Barcelos, José Hamilton Ribeiro, Fernando Morais, Mônica Teixeira, Narciso Kalil e outros mais – já questionava o destino do dinheiro arrecadado pela Caixa Econômica, originário das apostas na Loteca. E fez as contas: em oito anos de jogo, a Caixa Econômica, excluindo-se os prêmios pagos, arrecadara para seus cofres 57 bilhões, 387 milhões, 995 cruzeiros e 18 centavos, que era a moeda da época. Ivo Patarra mostrou o que se podia fazer com esse dinheiro: comprar, por exemplo, 940.786 “fuscas”, o mais popular carro nacional, produzido pela Volkswagen. Colocando essa frota imaginária em fila indiana, um carro atrás do outro, essa fila teria a extensão de 3.763 quilômetros, distância que separa o Recife de Porto Alegre. Essa dinheirama daria, também, para comprar 990 milhões de quilos de filé. Ou seis bilhões de litros de leite. Ou cinco bilhões de quilos de arroz… E, lembre-se: era apenas um jogo, um único volante, com sorteio semanal, sem a capilaridade que existe hoje nem os vários sorteios diários, algumas vezes com quatro diferentes jogos num mesmo dia. E milhares de casas lotéricas, espalhadas do extremo norte ao extremo sul do País..
Não sei se existe um Conselho Curador para os jogos de loteria da Caixa Econômica, assim como existe para definir as regras que orientam o Fundo de Garantia. Mas, sei que já é hora de alguém gritar e cobrar mudanças no destino atual desses milhões (bilhões?) de reais provenientes dos sorteios da Caixa, realizados todos os dias – inclusive aos sábados – para aplicá-los em ações, diretas ou indiretas, que venham em apoio à luta comum de combate à pandemia, que não olha classe nem cor, condição social ou mapa geográfico. É, sim, um jogo cruel, onde todos os brasileiros estão perdendo. E a Caixa Econômica Federal está ganhando.
Ivanildo Sampaio é jornalista
Excelente sugestão, Mestre Ivanildo.
Abraço