Paulo Gustavo 

Guimarães Rosa.

As redes sociais, em especial os perfis de várias editoras, puxaram o coro de parabéns aos 112 anos de Guimarães Rosa, transcorridos no último 27 de junho. Assim como fizeram com Machado de Assis, outro aniversariante genial do mesmo mês, que acaba de ter uma nova edição em língua inglesa de suas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Nem tudo está perdido: por alguns momentos, respira-se outro Brasil e se está em outro planalto, o dos autores eternos que não dormem nunca, pois estão acordadíssimos na cabeça dos melhores leitores.

Sou rosiano desde jovem. Rosiano de carteirinha, digo, de diploma de mestrado. E como vários outros rosianos também vejo que, no patamar de Rosa, só o gênio de Machado. O gênio os iguala, mas a literatura os separa em diferentes famílias.

Tendo estreado com “Sagarana” (1946), obra logo saudada pelo grande crítico pernambucano Álvaro Lins, Guimarães Rosa viria a se agigantar na década seguinte com “Corpo de Baile” e “Grande Sertão: Veredas” (ambos de 1956), aprimorando-se e refinando sua linguagem. “Refinando” não é bem o termo, pois, como os críticos passaram a observar, ele pôs em curso uma revolução na linguagem (neologismos, arcaísmos, inversões sintáticas, valorização da oralidade e muito mais). Nisso foi programático e assim alcançou um lugar único na nossa literatura. Nesse sentido, “Sagarana” dava sinais de “revolta”, mas não exatamente da “revolução” que viria a ocorrer em outros livros seus. Em minha dissertação, apontei que a dúvida, que viria a ser uma obsessão temática, é praticamente ausente em seu primeiro livro. Há realmente um hiato e daí para muitos “Sagarana” ter uma maior legibilidade… Sua linguagem ainda não chegara ao ponto do doce.

Rosa criaria o que se chama um “idioleto literário”. Seus dons de poliglota e seu amor telúrico à vida rural e interiorana (praticamente o único cenário de suas obras) se fundiram para dar uma plasticidade inovadora nunca antes alcançada pela língua portuguesa. E, como “o rio não dá paz ao canoeiro”, seu próprio e caudaloso rio o levou a desaguar em sua obra maior: o “Grande Sertão: Veredas”, um vertiginoso amálgama que mistura lirismo, metafísica, amor e angústia existencial, sem exclusão (pelo contrário) de um Brasil tão épico quanto profundo e dilacerado, singularmente antecipado por “Os Sertões”, de Euclides, com o qual dialoga, como bem estudou o crítico Willi Bolle em seu magnífico ensaio “grandesertão.br: o romance de formação do Brasil”.

Curiosamente, o “Grande Sertão: Veredas” originou-se de um conto. Isso bem condiz com o que Rosa disse em famosa entrevista: “Sou um escritor de contos críticos”. “Críticos”? Como assim? Penso que, com esse adjetivo (de resto, geralmente esquecido ou negligenciado), ele quis se referir, acertadamente, ao seu pendor filosófico, sempre incrustando reflexões em meio à fabulação artística. Mas é possível que percebesse que era algo ainda maior do que isso: era a sua revolução linguística, uma revolução capaz de, como disse Mia Couto, colocar “em transe” a língua portuguesa. Daí que a modulação linguística e a potência da linguagem o tenham levado ao questionamento do real, à dúvida (como uma “formatriz”) e, no limite, à própria criação do real.

Como que para dar liga ao seu texto (um texto que confia à pluralidade e à polissemia sua própria essência), o inquieto autor (tão paradoxalmente distante do diplomata bem comportado que encarnava), ao permanentemente questionar a realidade, vai lançando mão de temas e “instrumentos” que por assim dizer se associam à sua subversão criadora: a loucura, a mística, o inconsciente, o zen-budismo, tantos outros. Sua poética é de uma ambição onívora. Por isso dialoga, em rica intersemiose, com vários campos da cultura: a dança, a fotografia, o cinema, o teatro, a religião, a filosofia, a história e a sociologia.

À semelhança de Proust, de quem era grande admirador, Rosa é desses autores que costumo chamar de “ciumentos” (ciumentos dos demais escritores!), uma vez que “exigem”, para seu melhor desfrute, uma dedicação e um tempo específicos. Como resultado dessa fidelidade, ou dessa submissão ao seu ciúme, ganham os leitores não só em prazer literário, mas também em cultura, visão de mundo e refinamento de sensibilidade. Rosa, além de ser todo um curso de Brasil, é autor universal e tem sido considerado por vários críticos estrangeiros (o francês Pierre Lepape é um deles) como um dos maiores autores do século 20, a exemplo de Joyce, Jorge Luis Borges e Thomas Mann. A fortuna crítica rosiana é imensa, e não há sinais de que pare de crescer. A posteridade amplia o gênio. Travessia.