Embora colegas no Recife, na Fundação Joaquim Nabuco (MEC), nunca tive o prazer de conhecer Kleber Mendonça Filho. Talvez isso tenha se devido não só à nossa localização em diferentes setores culturais, como à diversidade geográfica da instituição, que, como se sabe, derrama-se por três grandes “campi” em três bairros recifenses. Todavia, de certa forma, quis o acaso que fosse vizinho de sala, por algum tempo, de sua mãe, a historiadora Joselice Jucá, cuja memória é sempre tão grata ao cineasta. Bravíssima Joselice! Foi com emoção que a revi no novo filme de Kleber, o documentário “Retratos Fantasmas”, no qual ela, ressuscitada pela tecnologia, praticamente protagoniza a primeira parte, uma espécie de prólogo em que, num exercício de autorreferência quase analítico, o diretor enfatiza sua infância e sua adolescência e, claro, seus primeiros flertes com o mundo da imagem, da fotografia e do cinema. 

Naturalmente, houve uma lógica em evocar inicialmente uma mãe tão forte, a casa de classe média e outros aspectos marcantes e familiares. Há os afetos. E não por acaso a psicanálise já pôs na mesma equação o amor à terra natal e o amor que se devota à própria mãe. O filme roda, o tempo passa, e viajamos nas evocações pessoais do diretor. Queremos, todavia, os espectadores, em especial aqueles que viveram a mesma época do diretor, os outros “retratos”: os da cidade do Recife e os de seus velhos e agora já inexistentes e fantasmáticos cinemas!

Enfim, a segunda parte, o núcleo duro do filme, abre-se à nossa vista. Uma cartografia de sonho e saudade se estende aos olhos amorosos da câmera. Kleber nos aponta que o centro do Recife era uma verdadeira cinelândia. Ali, como lugares mágicos, erguiam-se o Art-Palácio e o Trianon, ambos no mesmo maciço arquitetônico à beira da icônica avenida Guararapes; o Moderno, que olhava para a Praça Joaquim Nabuco; do outro lado do rio, na rua da Aurora, o São Luiz, cujo hall de entrada ainda hoje parece ser as próprias águas do Capibaribe; e mais adiante, na Rua do Hospício, o Veneza, que prometia ser, em seu slogan, “o melhor da Veneza”, numa alusão à própria cidade do Recife. Essa cartografia, fundamentada numa substanciosa pesquisa historiográfica, traz à luz para o espectador dados históricos valiosos, muitos dos quais arrancados a um duro esquecimento. 

O tom elegíaco do documentário tem altos momentos cênicos, alguns com a discrição da alusão poética (o jogo, por exemplo, dos títulos dos filmes em cartaz com a realidade em volta), outros com o dedo indicador apontado para a decadência urbana. O caso do Veneza é emblemático: um centro comercial “invade” as entranhas do prédio, e o velho cinema transforma-se, nas palavras de Kleber, num triste e passivo “hospedeiro”… Esse tom elegíaco, aliás, é assumido pela própria voz hipnótica do diretor-narrador-personagem, que não recua da ênfase de dizer que ama o centro do Recife. Deduz-se que tal amor faz uma severa denúncia de tantas ruínas reunidas… (Desde Ruskin, pelo menos, sabe-se o valor das ruínas). Como escreveu Machado de Assis, “a dor também tem suas volúpias”. Salvo engano, Kleber nos deixa em plena dor, embora com a mensagem algo subliminar de que o cinema era de fato central para a cidade do Recife, assim como central para ele próprio desde menino e adolescente.

Em meio a uma crise urbana dos centros das capitais brasileiras, hoje, ao que parece, uma espécie de lugar-comum, “Retratos Fantasmas” mobiliza afetos e de certa forma os organiza, e isso, escusado dizer, deve e pode mover a cidadania. Nem tudo é “fantasma”. Nem tudo é névoa. Vale a pena sentir o filme de Kleber como Kafka queria que um livro fosse: um machado que quebra o mar gelado dentro de nós. Oxalá, noutros filmes, o cineasta pernambucano possa mostrar (talento não lhe falta) um outro mar e as cores variadas da esperança, até porque, como diz nosso amigo Francisco Cunha, não por acaso agraciado com a Medalha do Mérito José Mariano, o Recife “é uma das cidades mais fotogênicas do mundo”.