O Brasil tem três intérpretes. Sérgio Buarque de Holanda, o homem cordial. Do latim cor, cordis, coração. Homem de paixão. Gilberto Freyre, a tri raça. Mescla de índios, brancos e negros. Portugal com açúcar. Homem misturado. Antônio Cândido, a língua. A pátria na sintaxe da palavra. Homem brasileiro.
Faltou alguém?
Sim. Celso Furtado. O quarto homem. O quarto intérprete. Talvez mais completo que os outros três. Não em tamanho contributivo. Ou latitude intelectual. Mas na escala do pensar e do fazer. Homem que sabia formular. E também agir. Como Malraux. Como Vargas Llosa. Estirpe de poucos. Que carregam a dor do conhecimento das coisas. E, ao mesmo tempo, a disposição para enfrentar a realidade nos seus limites.
A realidade e seus limites. Que impõe silêncios, subtrai recursos, desafia talentos. E, na arena do espaço público, semeia o discurso da construção. Permitindo que o intelectual, inconformado, se agigante. E tome, na palma da mão, a colher de Pedro Pedreiro. Para atuar na prática da gestão. No ofício da política. Assim foi Celso Furtado. Penso que esta será sido sua primeira característica.
A segunda de suas características foi o senso da reforma. Quando alguns imaginavam que revolução seria solução, ele pregava a sensatez: o caminho dos reformadores. O diálogo era sua instância preferencial. O convencimento era seu argumento final. A grande vantagem do reformador sobre o revolucionário é que este não deixa vítimas. O acordo vem sempre mais forte. Porque vestido em alianças. Duplicando energias.
Nesse ponto, sua experiência inicial no exterior, antes de ingressar no governo, em 1962, terá sido definitiva. Porque promoveu a troca fundamental: ele ensinou economia na Sorbonne e aprendeu arte política em Oxford. Exímio observador que sempre foi.
A terceira de suas características foi o olhar. A capacidade de olhar para a história. E para o futuro. Esta é uma sua outra singularidade. Ele olhava para trás e para frente. Via o passado e enxergava o futuro. Para avançar com menos erros, ele trazia o passado no bolso. Seus passos seguiam pegadas desenhadas pelo passado.
Por isso, ele era paciente. Era reformador. Era agente de transformação. E não se contentava com apenas ensinar e escrever. Precisava agir. Tinha ânsia de mudança. Percepção da obscenidade da miséria. E compreensão de que a saída do país passa pela remoção da desigualdade.
A lição mais bonita de Celso foi a lógica de sua concepção. Para além de economista. Na visão larga de humanista. Ele compreendeu que combater a desigualdade não era só uma questão ética. E era. Mas era igualmente parte da lógica capitalista. Sem vencer a pobreza extrema, o Brasil não tem como completar o mecanismo de oferta e demanda. A mecânica de funcionamento de mercado. Ou seja, o projeto capitalista é uma concepção econômica e social.
Cada vez mais social. Quando se agrega ao desenvolvimento o conceito de sustentabilidade. Quando se acata os valores de respeito à diversidade e aos direitos humanos. E quando se acolhe a amenidade do verde, a sanidade do meio ambiente descarbonizado.
Celso apontou o nó. Mostrou onde estaciona a viabilidade do desenvolvimento de países desiguais, como o Brasil. Estaciona na concentração de poder. Concentração de poder em estruturas burocráticas, politizadas. Que gera concentração de renda e riqueza.
Certa vez, Clovis Cavalcanti me disse que assistiu conversa entre Celso Furtado e Gilberto Freyre. No apartamento de Dirceu Pessoa. Fiquei pensando. Quando as pessoas são realmente grandes, elas se oferecem ao outro. Nas ideias, no afeto, na amizade, na admiração. E desse modo constroem um mundo mais fraterno.
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prezado Luiz Otavio, permita lhe dizer que seu artigo captou de modo muito feliz aspectos de Celso que costumam passar despercebidos: o espírito interdisciplinar de sua reflexão, a visão abrangente de entender os problemas, e em especial a junção que fez como poucos entre homem de ação e homem de pensamento. Quanto à capacidade de convencimento — real e insuperável — me fez lembrar uma frase ferina (como todas) do Assis Chateaubriand, que num dos inúmeros ataques a Celso chamou-o de Antonio Conselheiro de fraque… o que em seguida explicou como tendo Celso o poder de convencimento do beato mas com a roupagem de quem passou por Cambridge. Cordial e grato abraço. Rosa Freire d’Aguiar.
Das melhores crônicas dos 100 anos de Celso Furtado ! Por sensível e abrangente, focando na personalidade rara de homem ético e visionário.
( Ligeiro ajuste: ingressou no serviço público em 1959 com a criação da SUDENE).
Meu caro Luiz Otavio
É justamente este tipo de personagem que foi Celso Furtado que nos falta nos dias de hoje.
O artigo de Luiz Otávio eh uma síntese muito feliz da essência do pensamento e da ação de Celso Furtado. Quando ele cita 1962 como ano de início das atividades de Furtado no serviço público brasileiro, creio que quis referir-se aa nomeação dele, Furtado, para o Ministério do Planejamento, no governo Goulart, o que motivou a observação de Rosa Salles, minha colega na SUDENE, retroagindo este início a 1959, ano da criação desse órgão. Na realidade, porém, o início das atividades de Furtado como funcionário público eh muito anterior e remonta aos anos 40, quando prestou concurso para o antigo DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) e, muito jovem, foi trabalhar na Fundação Getúlio Vargas. Sua contribuição mais valiosa, entretanto, ocorreria em fins de 1958 quando, convocado por Juscelino Kubitscheck, Celso, recém-chegado ao Brasil depois de anos na CEPAL, foi designado Interventor no GTDN (Grupo de Trabalho do Desenvolvimento do Nordeste), e produziu seu famoso Relatório intitulado “Uma Política para o Desenvolvimento do Nordeste”, que daria origem aa criação da SUDENE, em março de 1959. Estes detalhes cronológicos, entretanto, não tiram o brilho da análise de Luiz Otávio, sem dúvida um dos melhores textos produzidos ao ensejo da comemoração do centenário de Celso Furtado