O Mito de Sísifo by Marc Perez.

 

A pandemia do novo coronavírus milita contra o calendário, parece frustrar o que há de simbólico na nossa geometria do tempo. O vírus contamina o tempo, parece retê-lo, evitando que um ciclo termine e outro comece. Como Sísifo, levamos a pedra imensa de 2020 até o topo, mas eis que ela retorna ao sopé da montanha. Evidentemente, a sensação não é nada boa, conspira contra a esperança, aumenta o nosso cansaço. Mas, como escreveu Camus, “É preciso imaginar Sísifo feliz”. É nessa imaginação que reside toda a dificuldade.

Como involuntário sinal da natureza, o vírus, em toda a sua crueza, lembra a radicalidade de nossa contingência: o que somos. O ser oscila e vacila não por qualquer visão lírica de um poeta desesperado, mas por um imperativo que é de sua própria essência. O ser está cercado por adjetivos que são desagradáveis de se encarar: transitório, vulnerável, desamparado, mortal. Vemo-nos por causa disso como na imagem pascaliana de nossa situação existencial: presenciamos os companheiros serem enforcados, um dia também o seremos. O vírus, assim, vai enforcando os brasileiros…

Os que sobreviverem não verão um mundo melhor. No sopé da montanha, haverá muitas pedras a serem empurradas até o topo. Uma delas é a pedra da fome e da miséria: estima-se que, por conta da Covid-19, 270 milhões de pessoas serão jogadas nesse inferno. A pedra do meio ambiente e da crise climática também aguarda a humanidade, desafiando a indiferença e o egoísmo de milhões. “É preciso imaginar Sísifo feliz.” Não sei se Camus está certo. O mito da felicidade é uma projeção de nosso apego a tudo o que nos traz prazer, daí ser tão fácil nele se acreditar. Buscar a felicidade no céu ou na Terra é a mesma ilusão. Nenhum político se elege se não acena com uma mudança para melhor, e isso justamente porque a realidade, qualquer que seja, sempre deixa a desejar. Como Pascal indicou com sabedoria: os profetas e adivinhos de desastres sempre acertam, pois é fácil apontar para o mal: ele sempre está aí. É preciso imaginar Sísifo criando estratégias para conviver com o mal.

Então, é janeiro. O vírus faz o ano entrar envelhecido, em especial no Brasil, onde encontra hospitalidade governamental. Há quem diga que o vírus é um excelente freio a manifestações de rua contra o governo. Oposição sem ruas e praças, que sonho de ouro! Quanta maldade e imaginação dos inimigos da Pátria! Enquanto isso, passa a boiada rumo a campinas verdes e amarelas. O presidente não é Sísifo, mas, segundo comentam, também está exausto: a faixa presidencial é uma pedra pesada, cansativa, impede os prazeres simples da vida, está sempre rolando montanha abaixo… Isso lembra a frase de um político que diz assim: “Quando eu não tinha um mandato, eu tinha uma vida!”. Tanto sacrifício pelo povo até comove. É extenuante deixar para trás churrascos, rachadinhas em flor, passeios náuticos, mil momentos de lazer e até pastéis.

Então, é janeiro. Não somos nem seremos Sísifos felizes. Somos Sísifos conformados. O povo brasileiro contenta-se com pouco. Um grão de alegria (é triste dizê-lo) já enche seu coração esvaziado. Às vezes demonstra que seu maior problema é ontológico: “Empurro essas pedras, logo existo!” Felizes os que têm uma pedra para empurrar até o alto! Aleluia! A pedra que despenca e rola montanha abaixo é um sinal de que o País se mexe!

Então, é janeiro. Janeiro é um hiato. Certa feita escrevi, num poema, que janeiro é o mais fugaz dos meses. Mas, neste ano de 2021, não haverá janeiro, mês no Brasil tão associado às férias e às viagens. É triste, mas não prometi alegrias, me perdoem. Não haverá janeiro nem fugaz nem fugacíssimo, como diria superlativamente o José Dias do “Dom Casmurro”. Não é bom sinal.