Sic transit gloria mundi (assim passa a glória deste mundo). Os papas pronunciam a frase três vezes, na cerimônia de posse, para lembrar a miséria que há na vaidade das pompas terrestres. Não por acaso, para os gregos, ídolo é o mesmo que fantasma, como que reconhecendo a dimensão especial dos papéis que lhe são reservados. Tanto que Scott Fitzgerald dizia (em O Grande Gatsby) “mostre-me um herói e escreverei uma tragédia”. E segue a vida. E vem a morte. Não há como alterar esse roteiro.
Momento mais evidente dessa finitude, e também do prazer intenso de viver, para mim é quando perco alguma pessoa próxima. E, de logo, tomo emprestado frase atribuída a Chopin, “não me compreendam tão depressa”. Porque essa aparente contradição entre sentimento de perda, e alegria indescritível, só pode ser explicada em função do cenário em que tudo isso ocorre, a alameda que vai da pequena capela do Cemitério de Santo Amaro (Recife) até o portão de entrada que lhe fica em frente. Depois de cada um desses enterros, invariavelmente, me dirijo a essa capelinha. E, dali, “vou por onde me levam meus próprios passos”, em palavras de José Régio (Cântico Negro), até o portão e depois à rua. Um caminhar lento, e em tão profunda solidão, que sou capaz de ouvir meus próprios passos, como se fossem de outra pessoa. E, em certo sentido, são mesmo.
Capela e portão convertidos em símbolos. Com diferenças grandes. A porta da capela está usualmente fechada; e o portão, aberto sempre. Atrás fica um homem morto, pregado na cruz; em frente, pessoas de carne e osso, vivendo suas bem-aventuranças e seus martírios. Atrás, apenas uma imagem de pureza e perfeição; em frente, vendedores de amendoim, motoristas de táxi, curiosos, pedintes, o circo da realidade. Atrás, a inscrição Jesus Nazarenus Rex Judaeorum; à frente, no porão, inscrição nenhuma. Mas quando passo por ele sempre lembro, por alguma razão imprecisa, da porta do inferno na divina Comédia, de Dante, onde se lê “deixai toda esperança, vós que entrais”.
Nessa caminhada, de um lado e de outro, uma legião de mortos que um dia tiveram as mesmas esperanças e desalentos que hoje temos. Mulheres e homens como nós, velhos e moços, gordos e magricelos, ricos e desvalidos, brancos, negros, pardos, mulatos. Todos democraticamente enterrados, lado a lado. Lembrando aos que passamos, com seu silêncio impotente, que o destino do homem é a igualdade. É o esquecimento. É o pó.
Olhando esses desconhecidos, sempre com muita pena (eu que nem os conhecia), fica para mim claro que o homem não nasce quando nasce, nem morre quando morre. Ele começa a nascer muito antes de se converter em feto, já traçando raízes nos locais onde andará, nos amigos que terá, quase como se seu itinerário já estivesse previamente traçado. Assim é com quase todos. E ele morre, no enterro, apenas sua primeira morte; para depois ir morrendo outras mortes, devagar, primeiro na memória dos amigos, depois em suas ideias, até que um dia desaparece de todas as lembranças para cumprir seu destino de ser, completamente, só nada.
O amigo Pessoa disse (em Sá Carneiro) “Nunca supus que isto que chamam morte/ Tivesse qualquer espécie de sentido”. E essa morte é sempre dura. Sinto isso agora, na carne, por terem sido tantos, em volta, e em tão pouco tempo. Menos de um ano. Uma sobrinha, Juliana. Minha mãe (ah!, minha mãe). Dona do Carmo (mãe de Lectícia). E agora, nessa terça, nossa irmã Patrícia. De Covid. Mesmo já tendo tomado a segunda dose da Coronavac quase 50 dias antes. Mulher de Pedro Arruda. E mãe de Gustavo (com Renatinha) e Bruna (com Alonso). Éramos 6, como no título do romance de Maria José Dupré. Hoje, somos apenas 5, a melhor parte de nós se foi. Choro por ela e por todos nós.
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