Riobaldo – autor desconhecido.

 

Nestes tempos tão sombrios quanto amargos da vida brasileira, é doce celebrar o maior romance brasileiro do século XX: o “Grande sertão: veredas”, a obra magna de João Guimarães Rosa.

Diz uma anedota que certo profissional, candidatando-se a uma vaga numa editora, teria posto no seu currículo que falava diversas línguas, inclusive a língua de Guimarães Rosa!…  Invenção que seja do folclore em torno do grande mineiro, a anedota toca no que Rosa como autor tem de mais essencial: o seu idioleto literário. Em qualquer de suas páginas, salta aos olhos a revolução pela qual se empenhou: a de fazer a língua portuguesa no Brasil dizer e falar o que até então nem dissera nem falara. Em suas mãos, em sua sensibilidade, a linguagem, como observou Mia Couto, é uma “linguagem de transe, que permite que outras linguagens tomem posse dela”. E decerto tem razão o crítico João Adolfo Hansen ao nos dizer que Guimarães Rosa “libera as muitas línguas presas na língua!”. Para Hansen, Rosa, como Joyce, tem “uma recusa da linguagem existente, sabendo que é impossível escrever em uma língua reduzida à estupidez instrumental”.

É, pois, de um insuspeitado plural da língua — insuspeitado, uma vez que apenas latente — que Guimarães Rosa vai, por assim dizer, criar uma literatura só sua, não obstante seu parentesco com outros autores nacionais, que, alheios ao mundo urbano, especializaram-se no vasto e estranho interior geográfico do País, cujas matrizes estão mais próximas do mágico, da loucura, das dilacerações e do esquecimento. Não por acaso, Rosa, como já apontaram os críticos Wille Bolle e Antonio Candido, dialoga, em seu “Grande Sertão”, com o universo a um só tempo criado e descoberto por Euclides da Cunha em “Os sertões”.

Marli Fantini, em seu livro “Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens”, observa que a escrita rosiana “encena processos de conversação entre várias línguas, entre distintos planos temporais e formações culturais produzidos em âmbito regional, nacional e universal […]”, observando ainda que “o procedimento de trocas linguísticas, históricas e culturais possibilita a inserção do ‘local’ numa territorialidade bem mais ampla e complexa do que, por exemplo, a dos ‘romances do Nordeste’”. Fantini afirma que, com tais procedimentos, Rosa “também deve ser lembrado por inventariar e restaurar toda uma tradição prestes ao apagamento. Como os antigos aedos, ou os recentes transculturadores, ele estendeu uma grande ponte entre memórias, culturas e tempos diversos”.

 

Para esse trabalho referido por Fantini, Rosa naturalmente contou com seu vasto talento de poliglota, sua sensibilidade telúrica e, de resto, com as duas profissões que abraçou: a medicina (que exerceu no interior de Minas e logo abandonou) e a diplomacia, que o fez conhecer de perto culturas tão díspares como as da Colômbia, da França e da Alemanha. Mas, como Roma não saiu de Lutero, o sertão brasileiro nunca saiu de Guimarães Rosa, o que lhe permitiu operar misturas culturais e intertextualidades jamais sonhadas.

 

“Opus magnum” do escritor, “Grande sertão: veredas”, um monólogo dialógico, como já foi chamado, é um maciço verbal que narra, em primeira pessoa, a vida do jagunço Riobaldo, que, em flashback, reflete sobre sua existência. Numa linguagem oral, mas altamente elaborada, o romance é um mostruário vivo das proezas rosianas com a língua: neologização farta, transgressões sintáticas, metaforização frequente, etc. Como cenário, temos os vastos espaços sertanejos; como temas, o amor, a morte, a condição humana, a hesitação de um Hamlet com uma vontade faustiana. Enquanto o foco épico se abre para as lutas entre jagunços e paisagens carregadas de simbolismo (confira-se, por exemplo, o papel do Rio São Francisco na estrutura do romance), o foco lírico se compraz no microcosmo de uma poesia singular e refinada.

Em artigo no “Le monde”, intitulado “A epopeia de João Guimarães Rosa”, em 8 de fevereiro de 1991,o crítico francês Pierre Lepape eleva o livro rosiano à categoria dos grandes clássicos da literatura ocidental. Trata-se, segundo ele, de obra comparável à dos maiores autores universais, a exemplo de Homero, Cervantes e Goethe. No Brasil, dispensável dizer, a obra se tornou um marco, e a maioria dos grandes críticos logo testemunhou que estava diante de um desses monumentos que fazem da arte literária o triunfo de toda uma cultura.

“Escritor de contos críticos”, como se autodefiniu numa rara entrevista, Guimarães Rosa sabia muito bem o quanto seu único e genial romance (“romance”, bem entendido, à falta de melhor termo!) devia à sua arte de contista, pois o “Grande Sertão: veredas” lhe surgiu originalmente como um conto. É o que nos revela a pernambucana Elizabeth Hazin em tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo em 1991. Em seu extraordinário estudo, ainda inédito, Hazin conta que foi o próprio Rosa que confidenciou a Ariano Suassuna essa origem por assim dizer discreta de sua obra monumental e hoje traduzida para várias línguas.

Enfim, celebremos Rosa e seu colossal romance, mas sem esquecermos que cada um dos seus livros por si mesmo forma um patrimônio inexcedível de nossa literatura, unindo, como se sabe, o nacional e o regional aos valores mais universais. Nestes tempos difíceis para a liberdade e a arte, a obra rosiana nos orgulha como poucas, plena de uma brasileiridade que passa longe, muito longe, de bravatas verde-amarelas.