Quase ao mesmo tempo em que o governo cubano proibia uma manifestação de protesto nas ruas de Havana, e que o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva justificava a medida antidemocrática, insinuando que as manifestações eram estimuladas pelo imperialismo americano, um grupo de músicos cubanos ganhou o prêmio Música do Ano, do Grammy Latino. A música é um rap intitulado “Patria y vida”. Composta e interpretada pelos músicos Yotuel Romero, Descemer Bueno, a dupla Gente de Zona e os rappers El Funky e Maykel Osorbo. A música premiada é uma paródia do desgastado slogan da revolução cubana – “Patria o muerte”, e tornou-se o hino do emergente movimento democrático de Cuba. Como um sintoma lamentável deste contraste entre o movimento democrático e o governo cubano, um dos músicos, Maykel Osorbo, não pôde participar da cerimônia de entrega do prêmio porque está preso, “único preso a receber um Grammy”. (Algumas estrofes abaixo da música).
“Todo ha cambiado, ya no es lo mismo
Entre tú y yo hay un abismo
Publicidad de un paraíso en Varadero
Mientras las madres lloran por sus hijos que se fueron”
“Somos artistas, somos sensibilidad
La historia verdadera, no la mal contada
Somos la dignidad de un pueblo entero pisoteada
A punta de pistola y de palabras que aún son nada”
“No más mentiras
Mi pueblo pide libertad, no más doctrinas
Ya no gritemos patria o muerte sino patria y vida
Y empezar a construir lo que soñamos
Lo que destruyeron con sus manos
Que no siga corriendo la sangre
Por querer pensar diferente
¿Quién le dijo que Cuba es de ustedes?
Si mi Cuba es de toda mi gente”
Quase a metade da população de Cuba tem menos de 40 anos, e cerca de 34% ainda não completaram 30 anos. Quando nasceram, a mística revolucionária já estava envelhecida. Essa distância de gerações deve provocar um alheamento do slogan revolucionário e um inconformismo com a igualdade na escassez, as cotas de alimentos e as filas intermináveis (para não falar no privilégio dos que detêm dólares), com o mercado negro e, principalmente, com a falta de liberdade de informação e de organização. A pandemia escancarou as fragilidades econômicas de Cuba, e as recentes manifestações de protesto evidenciaram a rigidez do sistema político do país e a insensibilidade dos dirigentes, que continuam responsabilizando os inimigos externos pelos problemas nacionais. Nas últimas décadas, a União Soviética desmoronou, acabando com o fundamental apoio político e econômico, a China se inclina na direção do capitalismo, e a transformação digital está rompendo as fronteiras nacionais. Mas o governo cubano continua ignorando o mercado, controlando a informação, e desconhecendo as mudanças tecnológicas e geopolíticas que sacodem o mundo. Depois de 60 anos do longevo regime, os cubanos não devem ter mais identidade com a ideia de morte pela pátria, querem vida, e vida melhor e mais livre.
Nos últimos anos, o governo cubano vinha tentando flexibilizar a economia, abrir o mercado e liberar atividades privadas. Ensaiou uma renovação da estrutura de poder, sem, contudo, abandonar o sistema de partido único e de imprensa estatal. Os dirigentes sabem que é inevitável e inadiável organizar uma transição do “socialismo” cubano para uma economia de mercado e um sistema político democrático. Pareciam dispostos a tentar uma “perestroika” (reestruturação econômica) mas não admitem uma “glasnost” (abertura política). Eles temem que cada passo na reestruturação econômica provoque uma avalanche de demandas sociais e, principalmente, políticas que ameacem o seu domínio político. Foi assim com a liberalização da internet, através da qual os cubanos descobriram o mundo, conheceram as mazelas e injustiças, mas também os encantamentos, as inovações e as oportunidades. E que, além do mais, tornou-se uma poderosa ferramenta de mobilização, organização e divulgação das manifestações em grande parte do território cubano.
O bloqueio econômico norte-americano é uma aberração, um resquício inaceitável da guerra fria que, evidentemente, prejudica a economia cubana. Mas não é a causa das fragilidades do país, que resultam, antes de tudo, do anacronismo do modelo econômico e do regime político. O governo cubano não consegue entender que os protestos e o rap “Patria y vida” indicam, na verdade, que Cuba precisa acelerar a transição para uma economia de mercado (até para consolidar avanços sociais, como na educação) e abrir o caminho para a democratização das instituições. Contaminado pelas ideias de uma esquerda anacrônica, Lula continua falando em conspiração do imperialismo americano, para justificar a sobrevida de um sistema de partido único, sem liberdade de imprensa e de manifestação pública.
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