Joe Biden, o Presidente dos Estados Unidos, completa seus 100 dias de governo sem que se tenha dissipado ainda o espanto pela mudança que trouxe. A surpresa vem talvez do contraste com as baixas expectativas do início do ano, ainda sob o impacto de um encolhimento de 3,5% do PIB no ano passado e um ritmo de infecções que parecia fora de controle. Quase findo o quadrimestre o panorama mudou, a economia americana poderá crescer “a ritmo chinês”: o FMI revisou para cima, para 6,4%, a taxa esperada de crescimento do PIB dos Estados Unidos em 2021. E o crescimento no país que tem a maior economia pode beneficiar o mundo todo.

Não há, nas atuais condições, como não começar pelo enfrentamento do coronavirus, área em que obtém da opinião pública as melhores notas. Biden chegou com a meta de 100 milhões de vacinas nos primeiros 100 dias. Sua meta foi cumprida aos 58 dias. Foi acelerada a vacinação desde janeiro, em clima de mobilização nacional, e no fim de março estavam sendo aplicadas 3 milhões de doses por dia.

A velocidade da vacinação, das mais rápidas do mundo, entusiasma, mas há que dar crédito também à “Operation Warp Speed”, ainda no governo Trump, pela qual foram assinados contratos prévios de compra de 800 milhões de vacinas de seis companhias, que permitiram a conduta dos testes clínicos pelas empresas com pouco risco financeiro. Com todas as letras: houve intervenção do governo em favor da produção de vacinas. E as doses administradas por Biden começaram a ser produzidas antes que ele chegasse ao governo. Já não há falta de vacinas, e assim fala-se na possibilidade de exportação e doação de doses excedentes. No discurso dos 100 dias, Biden disse que os Estados Unidos logo compartilharão vacinas, mas não deu data.

Ao fim dos 100 dias os Estados Unidos têm quase 230 milhões de doses aplicadas, e estão imunizados, por terem recebido as duas doses, mais de 100 milhões de residentes, bem mais que um terço da população. É bem grande a variação dos índices de vacinação de estado para estado, mas hoje pode receber a vacina qualquer pessoa a partir de 16 anos de idade.

Pesquisadores consideram que uma imunização entre 70% e 85% da população é necessária para interromper a propagação do coronavirus, e projeções indicam que os 70% de imunizados poderão ser alcançados no fim de julho. A expectativa é que a resistência à vacina, que existe principalmente entre evangélicos brancos partidários de Trump, não chegue a prejudicar o objetivo da imunização maciça. Não deixa de ser assustador que 20% dos americanos indagados em pesquisa recente tenham dito que não pretendem tomar a vacina (cf. KFF Covid-19 Vaccine Monitor). No seu discurso dos 100 dias Biden apelou: “Go get vaccinated, America. Go and get the vaccination.”

Animadoras são também as notícias para a economia, na esteira da vacinação e da aprovação pelo Congresso de seu pacote de estímulo de US$ 1,9 trilhão (1 trilhão e 900 milhões de dólares). Essa injeção de dinheiro emergencial, destinada a mitigar os efeitos da pandemia entre as famílias mais pobres, veio em cima dos US$900 bilhões de fundos de ajuda emergencial que, após muito debate, haviam sido assinados por Trump em 28 de dezembro, a três semanas da inauguração de Biden. O total do alívio mais que compensou a perda de renda pessoal dos grupos mais pobres e nem tão pobres, pois a distribuição dos cheques teria atingido 85% das famílias! Foi a parte mais fácil de ser aprovada, pois é gasto financiado por déficit e dívida pública. Dificilmente qualquer outro país tem condições para um estímulo fiscal desse porte. E mesmo nos Estados Unidos surgiram advertências sobre o risco de volta da inflação. Até um defensor do aumento do gasto público como Larry Summers considerou excessivo o estímulo, que calcula ser 5 a 6 vezes o tamanho da queda de renda pela pandemia.

Junto com esse estímulo emergencial, de proporções inéditas desde o New Deal dos 1930s, Biden propõe aumentar o salário-mínimo para US$15 a hora (dos atuais US$7,25), mas isso o Congresso rejeitou. Por ordem executiva, Biden determinou então o salário-mínimo de US$15 para empresas com contratos com o governo federal. Especula-se que negociações com o Congresso poderão levar a um valor intermediário, mas mesmo alguns dos senadores do partido de Biden temem que um aumento do salário-mínimo possa prejudicar a criação de empregos na retomada econômica, que já trouxe a taxa de desemprego do pico de 15% em abril passado para 6% em abril deste ano.

Já está claro que não terão passagem fácil as outras propostas, como o investimento público de US$2 trilhões em infraestrutura física e social nos próximos oito anos, bem como o gasto de US$1,5 trilhão em educação e assistência à primeira infância, que precisam ser financiados por um aumento de impostos. O programa de infraestrutura incorpora em geral uma ideia de “transição ambiental” e inclui itens como conservação de estradas, a substituição dos encanamentos de chumbo, redes de transmissão elétrica, a instalação de terminais para carregar carros elétricos. A promessa é que criará emprego, o principal argumento para buscar o apoio da opinião pública, já que, no país dividido, muitos no Partido Republicano ainda acham que mudança climática é “fantasia de esquerdista” e rejeitam projetos para a redução das emissões de carbono.

A aposta de Biden é que haveria apoio para taxar os mais ricos. Alegam assessores do Presidente que não há evidência de que aumentos nos impostos sobre ganhos de capital desencorajam investimentos, que os atingidos seriam poucos (0,35% dos contribuintes), e que isso seria compensado pelo aumento previsto de atividade econômica. Fora a reversão do corte assinado por Trump em 2017, a ideia apresentada vai, basicamente, na linha de eliminar, para as faixas de renda mais alta (superiores a US$ 1 milhão por ano), as diferenças de taxação entre ganhos de capital e outros rendimentos. Se eliminado o atual tratamento diferenciado para ganhos de capital, o máximo atual de 24% poderia dobrar. Chegaria a 37%, que é a taxa máxima do imposto de renda, e poderia inclusive aumentar para 43%, se incluída a taxa adicional para ganhos de investimento criada no governo Obama para financiar a saúde.

Ao que parece há algum apoio, mesmo em Wall Street, para uma parte da reforma tributária que Biden propõe, a de reverter o corte de impostos de 2017. Mas é grande o alvoroço em torno do considerável aumento do imposto sobre ganhos de capital. Em lugar algum do mundo é fácil aumentar impostos, mesmo para fins meritórios e mesmo depois de contínua evidência de um processo de forte concentração de renda em curso.

Em todo caso, não há como duvidar da sabedoria política de Joe Biden. Não vamos analisar aqui o teor e a repercussão de seu discurso dos 100 dias à sessão conjunta do Congresso em 28 de abril. Foi longo e em alguns pontos comovente. Registre-se apenas que começou dirigindo-se a Nanci Pelosi e Kamala Harris, no pódio atrás dele: “Senhora Presidente da Câmara, Senhora Vice-Presidente. Nenhum presidente disse essas palavras deste pódio. Nenhum presidente alguma vez disse essas palavras. E já é tempo.”

Desde as primeiras semanas Biden cuidou de reconstruir as relações multilaterais dos Estados Unidos enfraquecidas e parcialmente destruídas durante os quatro anos do governo Trump. Parou a construção do muro entre Estados Unidos e México, prometeu alterar a política migratória, anunciou a retirada das tropas americanas do Afeganistão, manifestou a intenção de voltar a negociar um acordo nuclear com o Irã, e convocou a reunião sobre mudança climática com os chefes de países que têm maior impacto nas emissões de gases de efeito estufa. Assim retoma a iniciativa nos preparativos para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a reunião da ONU sobre clima a realizar-se em Glasgow, Escócia, em novembro. Retornou os Estados Unidos ao Acordo do Clima de Paris e à Organização Mundial da Saúde, e sinaliza que os Estados Unidos querem recuperar a posição de líder de uma ordem mundial baseada em regras multilateralmente acordadas. Da Organização Mundial do Comércio não disse nada.

Diferente do que se viu depois da Grande Recessão 2007-2009, quando chamaram a atenção zilhões de palavras escritas sobre o declínio relativo dos Estados Unidos na economia mundial, ainda não há nesta ocasião muita comparação explícita com o desempenho da China. Impulsionada ou não pelas acusações de Trump, a hostilidade aos chineses tem aumentado nos Estados Unidos nos últimos anos. É inegável que o pano de fundo de boa parte das ações pretendidas, em particular a ideia de injetar dois trilhões de dólares de dinheiro público para renovar a infraestrutura nacional, é o assombro com o crescimento espetacular da China neste século. Observei uma frase no discurso dos 100 dias: “Estamos em competição com a China e outros países para vencer o século 21.” (“We’re in competition with China and other countries to win the 21st century.”)

Os peritos que estudam a “ordem mundial” não terão esquecido que a estrela do Forum Econômico de Davos de janeiro de 2019 foi Xi Jinping, com um discurso ambientalista, e que a China tem aumentado rapidamente a produção de energia renovável de baixo custo. De imediato, a China superou mais rápido que qualquer outro país o impacto econômico da pandemia, ao conter mais rapidamente a propagação do vírus via mudanças comportamentais e na circulação de pessoas, usando relativamente pouco estímulo fiscal de emergência.

Passados os primeiros 100 dias, o Presidente Joe Biden, junto com a Vice-Presidente Kamala Harris, comemoram o sucesso dos primeiros passos, quando enfrentaram questões imediatas sem se afastarem da diretiva “America first”. A próxima etapa é das questões de longo prazo, como a desigualdade crescente e a transformação do trabalho que já não voltará a existir como outrora na indústria manufatureira, como o aumento da violência, como a reinserção dos Estados Unidos na economia global e no comércio internacional que vêm sofrendo mudanças que independem do que acontece no país e não serão resolvidas com “Buy American”. Sem falar na pretensão difusa de voltar aos tempos de líder na ordem global. Em suma, ainda falta muito trabalho para reconstruir a confiança dos aliados e a confiança na liderança americana, tanto no cuidado da casa comum, nosso Planeta Terra, quanto no almejado e arranhado modelo de democracia ocidental.