Natal é um tempo de recordar de algum modo a própria infância. Mesmo porque só criança – e nem toda – acredita em Papai Noel. No Natal da minha infância já teve alguma vez Papai Noel e sempre teve um pinheiro: meu pai de algum modo sempre conseguiu trazer para casa um pinheiro bem grande e verde escuro. Vivo. Que tratava de replantar depois.
Vai ver se lembrava de natais de neve da infância dele, lá onde hoje é subúrbio de Colônia, que ainda era distrito separado nos primeiros anos do século XX. Pois lembro que meus pais, ao menos na minha infância, ainda colocavam fiapos e chumacinhos ralos de algodão no pinheiro, lembrando, como na canção alemã, que o pinheiro é sempre verde, não só no verão, mas também no inverno quando neva. (O Tannembaum, … Du grünst nicht nur zur Sommerzeit, doch auch im Winter wenn es schneit”…) Tudo ao contrário, que a colheita do algodão no Brasil costuma ser em junho…
E meu pai colocava no pinheiro velinhas coloridas, de verdade, pegava o fósforo e as acendia na hora de cantar antigas canções de Natal. Em alemão. Velas que ficavam em minicastiçais com pregador para prender na ponta dos galhos. Só vi isso no pinheiro lá de casa. Será que os Hoffmann trouxeram isso com eles no navio Zelândia em 1911, junto com alguns poucos instrumentos? O pai ficava prestando atenção nas pequenas chamas, com cuidado para que não pegasse fogo alguma ponta de galho. Meus irmãos mais velhos e eu ainda tentamos manter a tradição da cantoria em alemão em torno do pinheiro, mas já não funciona bem, assim como já desistimos faz muito tempo de imitar neve na árvore ou de iluminar estrelinhas sem eletricidade.
Não lembro muito de presente de criança. Sei que uma vez ganhei uma boneca cujos olhos se moviam, moderna, suponho; o que fiz no dia seguinte foi quebrar a boneca para entender como funcionava o mecanismo que permitia o movimento dos olhos. Tenho certeza, que por isso não fui repreendida. O que lembro muito bem é que no Natal papai sempre comprava chocolates e marzipan, só para a ceia de Natal, lembro do marzipan em formato de frutinhas e bichinhos, maçãs e leitões. Na Kopenhagen. Na antiga! Pois já não tem marzipan com formas de bichos e frutas, só barras cobertas de chocolate. Adoro marzipan, mas agora, depois de ter morado na Alemanha, prefiro o de Lübeck, a terra de Thomas Mann, que o nosso nacional costuma ser açucarado demais. E só agora descobri que isso é de origem árabe!
Houve um tempo, já adulta, em que passei a desgostar de Natal, quase raiva, achei que Natal só servia para a minha mãe se esfalfar no forno e no fogão: fazia pão, fazia panetone, fazia uns doces alemães de especiarias cujo nome já esqueci, que ela aprendera com a mãe dela, minha avó Lucia De Ponte. Só aprendi mesmo a torta de maça dela, diferente de todas. Mas minha implicância com Natal, sobretudo quando ligado a uma imagem de comilança, passou. Passou quando descobri que minha mãe gostava da trabalheira natalina, fazia com amor, contente de dar panetone de presente, e com amor preparava o pato assado e seu molho, mais o purê de maçã, que o preferido do papai naqueles tempos era pato.
De qualquer modo, a época de Natal sempre me traz a recordação do meu pai. E quando descobri que o Papai Noel nosso era ele, também deixei, ao mesmo tempo, de acreditar em deus.
Meu pai, meu papai querido, chegou ao Brasil em 1911. Tinha 6 anos de idade. A família toda – quatro adultos e cinco crianças – embarcou no porto de Amsterdam (o mais perto de Colônia) e chegou a Santos depois de 20 dias. O navio ainda havia passado por Lisboa, onde embarcaram muitos imigrantes mais. Vi o registro desses Hoffmann, todos os nove, no Museu da Imigração do Estado de São Paulo: Wilhelm, Emilie, seus cinco filhos (Alfred, Luise, Siegfrid, Hellmut e Herbert, por ordem de idade) e mais duas tias, irmãs de Emilie. São os registros dos que foram, na chegada, para a Hospedaria dos Imigrantes. No Museu da Imigração também estão os depoimentos do meu pai, Hellmut, junto com minha mãe, Annemarie, dados a uma pesquisadora e historiadora gentil, em 19 de janeiro de 1994. Meu pai tinha então quase 89 anos de idade.
Tive um pai que foi sempre presente, mesmo quando eu já não morava na casa paterna ou já estava fora do Brasil, pois mantivemos uma vasta correspondência, ora em português, ora em alemão, ora em inglês. Dominava todas com perfeição, e tenho cartas dele dos 1970s em que corrigiu ora o meu alemão, ora o meu inglês. Quanto mais sei da vida e da vida dele reconheço que tive um pai maravilhoso.
Tinha uma ética da austeridade – se é que é possível resumir assim a sua visão do mundo. Jamais ouvi que se queixasse da vida. E não é que não tivesse enfrentado revezes. Aliás, minha mãe tampouco era de “coitadinhar-se”. Em retrospecto, verifico que meu pai nunca foi muito de ficar contando aos filhos o seu passado. Foi impressionante a dureza da chegada e da vida desses imigrantes em seu primeiro ano de Brasil, para o que oficialmente, ao que parece, se chamava “colonização”. Só haviam trazido suas roupas e alguns instrumentos. Pois meu avô Wilhelm construiu ele próprio, ao chegar lá no seu pedaço de terra e mata, as camas em que dormiram nos primeiros anos, de galhos de árvore descascados e cipó trançado. Disse meu pai que eram confortáveis. As roupas, inadequadas para o verão de 1911 em que chegaram na região do vilarejo de Nova Europa, logo foram completamente furadas pelos insetos. Das formigas e grilos, da casa com paredes de sabugo de milho que lá encontraram, bicho do pé, pobreza e fome eu só fui saber pelo depoimento dele ao Museu da Imigração. Viveram nos primeiros meses recebendo mantimentos do que eram em Nova Europa as autoridades encarregadas da “colonização”, em troca de derrubar a mata para abrir estrada. Um saco de feijão, um saco de arroz, um saco de fubá… Esse foi o começo. Depois a vida melhorou, ao menos fome já não houve, pois a terra era boa. Logo houve fartura de mandioca e de banana. Está tudo lá, Museu da Imigração do Estado de São Paulo, no depoimento de Hellmut Hoffmann.
Quando eu conheci o sítio, criança, no tempo da II Guerra quando lá vivemos três anos, já havia uma casa grande e sólida, bonita. A estrada que eles haviam desbravado ainda era de terra batida, a égua Jurema puxando a charrete conhecia o caminho de casa sozinha. E a terra lá no sítio às margens do rio Itaquerê dava de tudo: mangas várias, laranja, abacaxi, mexerica, goiaba, hortaliças, agrião lindo na água cristalina correndo devagarzinho, e, é claro, milho, mandioca e vários tipos de banana. Até um pé de tamarindo havia, e um de carambola. Havia um apiário. Muitas galinhas, livres. E algumas vacas leiteiras no pasto, que a Tia Luise ordenhava. De quando em vez até um lambari pescado no rio, tão pequeno que só dava pro gato. Lembro que a gente comia arroz e feijão quase todo dia, mesmo porque a tia era vegetariana, mas não lembro se também era plantado no sítio, ou se era comprado com dinheiro que a tia ganhava vendendo ovos, manteiga e requeijão. Fomos crianças felizes lá no sítio. Mas ainda havia bicho do pé. E morcegos.
Post Scriptum – Pelo histórico da Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo vi que no ano de 1911 chegaram ao Brasil algo mais que 4 mil imigrantes alemães, dez vezes mais portugueses (quase 47 mil e quinhentos), pouco mais de 27 mil espanhóis. Assim pude entender como um menino de 6 anos chegou a reparar que quando o navio em que ele vinha de Amsterdam parou em Lisboa entraram muito mais imigrantes.
Querida Helga,
Memórias de infância não são escritas para serem comentadas. Mas não resisti a compartilhar com os leitores da revista algumas boas recordações dos Hoffmanns, muito antes de conhecer Helga. Meu marido havia sido colega do ITA do irmão dela, Ulrich. Ambos recém-formados, vieram nos tempos heroicos da Sudene trabalhar no projeto de Celso Furtado e aqui compartilharam em três (mais José Expedito Prata) um apartamento para morar no bairro da Boa Vista. Esse ap era também local de reuniões do antigo partidão. Demitidos da Sudene, Hoffmann foi exilado para Costa Rica e depois Chile, Prata para Paris e depois Argélia, onde morou com Miguel Arraes. Quando eu e o Hamilton, em outra circunstância, também saímos do Recife meio exilados para São Paulo, lá já estava morando o Prata e a Regina, de retorno da Argélia. Um tempo depois, Hoffmann e Marize retornaram do Chile e foi então que os conheci e aos filhos, que passaram a conviver com os nossos.
A proximidade das famílias era grande e passamos a frequentar o sítio. Fui buscar agora nos meus guardados uma fotografia de Pedro, meu caçula, no aniversário de um ano, no meu colo, o velho Hoffmann ao lado tocando uma música na gaita. Todos os homens adultos amigos de seus filhos varões eram intimados a pegar uma enxada e executar algum trabalho na roça. Nós ajudávamos dona Anna nos trabalhos de casa. Eram finais de semana maravilhosos naquele sítio. Passeios pelos bambuzais, banho no açude, passeio de barco…
Muito tempo depois é que conheci Helga, quando fui fazer o pós-doutorado no MIT, visitando-a no seu apartamento em Nova York. Daí surgiu a amizade que se consolidou com o seu retorno ao Brasil e sua aceitação para fazer parte da “Revista Será?”, ao tempo em que eu era do Conselho Editorial. Hoje em dia, é por ela que sei de cada um de seus irmãos e sobrinhos, que um dia foram grandes amigos nossos em São Paulo e a vida levou-nos por caminhos distantes.
Texto bonito. Como o Brasil era diferente. Como o mundo mudou. Mas coisas ficaram. Belas.
Claro que fiquei contente com o adendo de Teresa Sales com recordações sobre meu pai. Obrigada. Mas preciso fazer duas correções, uma delas importante porque se relaciona com a história das ditaduras na América Latina. Meu irmão engenheiro, Ulrich, foi primeiro para o Chile e depois para a Costa Rica, e só saiu da Costa Rica para retornar ao Brasil depois da Lei de Anistia. Seu terceiro filho nasceu na Costa Rica. A ordem importa porque a pequenina Costa Rica é um exemplo de democracia (pelo menos desde a guerra civil de 1948). Ulrich Hoffmann fugiu da ditadura brasileira e foi abrigado pelos chilenos. Lá até fundou, com outros brasileiros, um restaurante cuja receita se destinou a sustentar o montão de refugiados da ditadura brasileira que viviam no Chile. Chegou a trabalhar no governo no Chile, encarregado de um órgão de atenção à pequena e média empresa, ainda no tempo da “Concertación”. Lá viu, depois da eleição de Allende, os ultra nos sindicatos (aqueles que ouviam tipos como o radical provocador André Gunder Frank) invadindo e tomando fábricas que depois não sabiam gerenciar. Saiu do Chile para a Costa Rica depois do golpe de Pinochet. Escapou com vida porque ficou refugiado com a família toda (já tinha duas filhas) e várias dezenas de outras pessoas na Embaixada da Holanda. Os holandeses foram generosos: a embaixada tão cheia que as pessoas só podiam deitar por turnos, não havia espaço para todos dormirem no mesmo horário. (Diga-se de passagem, neste momento em que tem gente que aplaude algo historicamente tão enganador como o filme “Marighella”, que meu irmão jamais foi partidário nem membro de qualquer grupo em favor da luta armada contra quaisquer das ditaduras latino-americanas.)
A segunda errata não importa. Mas o sítio que Teresa Sales conheceu não é o dos “colonizadores” na região de Araraquara. É outro, um pequeno, quase chácara, que nunca teve produção agrícola, que foi comprado por meu pai no fim dos 1950s, fica dentro da Região Metropolitana de São Paulo, perto de São Roque. Meu pai, ambientalista pela própria natureza, ali plantou muitas árvores e preservou a mata ciliar, mas desgraçadamente a “vizinhança” lá costuma entrar para roubar madeira.