Embora seja precipitado, considerando que estamos longe do início da campanha eleitoral e nem sequer estejam postas as candidaturas, os analistas políticos se comportam como se a polarização entre Lula e Bolsonaro estivesse consolidada. Muitos acenam para um confronto entre o bem e o mal, entre a democracia e a barbárie, o ex-presidente Lula anunciado como a última fronteira contra o avanço do autoritarismo destrutivo de Bolsonaro. Além da pressa em decretar a impossibilidade de uma alternativa à polarização, para que Lula seja alçado à posição de guardião da democracia, é necessário que ele abandone claramente a ideia de controle social da imprensa (que continua repetindo) e o apoio sistemático que vem dando aos governos ditatoriais da Venezuela e da Nicarágua.
De qualquer forma, antes mesmo dos resultados eleitorais, a consolidação desta polarização eleitoral tende a esvaziar o debate político, reduzido a agressões e ataques verbais (ditador e criminoso, de um lado, ladrão e comunista, do outro), e deixando de lado a discussão em torno de um projeto para o futuro do Brasil. Certo, devemos impedir as intenções golpistas e ditatoriais de Bolsonaro. Mas então, o que fazer para abrir um ciclo de desenvolvimento do Brasil, quais são a prioridades para o futuro?
Até agora, tudo o que Lula falou em discursos e reuniões políticas mostra que ele continua prisioneiro do cansado nacional-desenvolvimentismo, que teve sucesso no passado, mas que não tem mais a menor consistência com o mundo da globalização e das revoluções tecnológicas, nem com o Brasil contemporâneo e suas novas contradições. Embora tenha dito na entrevista à Time que não ia apresentar proposta para a economia, como se o eleitor fosse dar um voto no escuro, nos pronunciamentos Lula promete desfazer o que foi realizado até agora, e continua centrando suas baterias na revogação de algumas importantes reformas realizadas desde o governo de Michel Temer (algumas das quais, necessário reconhecer, continuadas no governo do demolidor maior). Sendo assim, o preço para impedir a reeleição de Bolsonaro seria um grande retrocesso nas reformas estruturais: suspensão das privatizações e submissão das empresas de capital misto (como a Petrobrás) aos interesses políticos do presidente da República, revogação da reforma trabalhista e eliminação da âncora fiscal representada pelo teto de gastos – que devem empurrar o Brasil para o fracasso.
O Brasil precisa, portanto, de uma candidatura com um projeto alternativo que seja capaz de quebrar a polarização com propostas diferenciadas dos dois candidatos que lideram as pesquisas, elevando o nível e a qualidade do debate em torno de uma estratégia de reconstrução nacional. Que, ao mesmo tempo, consolide a democracia, jogando Bolsonaro para o lixo da História, e aprofunde e amplie as reformas estruturais, especialmente a reforma administrativa e a reforma do Estado, para conter a elevação das despesas primárias (em vez de suspender o teto de gastos, abrir espaços no orçamento para aumento dos investimentos) e aumentar a eficiência do setor público.
Não se trata de uma vaga e indefinida terceira via, mas de uma candidatura que promova um debate com a sociedade em torno de um projeto de desenvolvimento e reconstrução nacional contemporâneo, e consistente com a realidade de um país de renda média, com baixa competitividade econômica e produtividade e com elevada desigualdade social. Quem seria este candidato? Ainda não parece visível no horizonte. Ciro Gomes não se enquadra nesta tendência política alternativa, porque, embora se apresente contra os dois candidatos que lideram as pesquisas e tenha um projeto, suas propostas estão carregadas do mesmo arcaico nacional-desenvolvimentismo de Lula, de quem tenta diferenciar-se apenas pelo discurso contra a corrupção. Pode ser mesmo que não surja uma candidatura viável capaz de quebrar a polarização, mas existe na sociedade brasileira (entre os intelectuais e os políticos) uma percepção, mesmo ainda imprecisa, de um projeto de reconstrução nacional que tem como pressuposto o equilíbrio fiscal e as reformas estruturais, para recuperar a capacidade de investimento do Estado, com total prioridade nos ativos sociais (educação, qualificação profissional e saneamento). Enquanto Lula e Bolsonaro disputam para ver quem é mais generoso na transferência de renda, quem oferece mais assistência social à população vulnerável, sem esquecer as emergências, um projeto de reconstrução nacional deve se voltar para investimentos de larga escala nos ativos sociais. Ao mesmo tempo, encaminhar uma reforma tributária que, além da simplificação do sistema, reformule os mecanismos de incentivos que geram elevada renúncia fiscal para proteção de setores obsoletos, promover uma abertura externa programada, e estimular a inovação, combinação que contribui para o aumento da competitividade e a produtividade da economia. A recuperação da capacidade de investimento e aumento da eficiência do Estado permite reforçar o provimento de serviços públicos, especialmente educação, capacitação profissional e saneamento, e otimizar o poder regulador, com ênfase na gestão ambiental, em busca de uma economia de baixo carbono.
Esta é uma vertente política relevante no meio intelectual brasileiro, em amplos segmentos da sociedade e entre políticos que pensam o Brasil (não são muitos, é verdade). Pode não existir ainda uma terceira via eleitoral, mas existe, sim, um projeto alternativo de desenvolvimento nacional. Infelizmente, esta tendência carece de lideranças capazes de empolgar os brasileiros com uma candidatura viável, que quebre a nefasta polarização entre o populista que destrói o presente e aquele que se orienta pelo passado, ambos ameaçando o futuro do Brasil.
Lúcidas e consistentes palavras. E esperançosas, apesar de tudo.
Não vejo outro caminho.
Boa tarde. Gostei muito deste artigo e concordo 90% com este pensamento. Só uma coisa me preocupa. Não sou contra a privatização de empresas estatais que visam o lucro mas no nosso sistema de corrupção institucionalizado nas três esferas de poder e nos três poderes da República. A privatização no Brasil tem sido um fiasco, enriquece alguns, corrompe ativa e passivamente e não traz nenhum dividendo social para acabar com a desigualdade vergonhosa até o século XX!. No Governo do FHC de quem fui eleitora por duas vezes, ele privatizou várias estatais e não vimos benefícios para a sociedade. Ao contrário, houve demissão de milhares de pessoas das estatais e a privatização não contribuiu nem para o crescimento da economia, nem para o desenvolvimento tecnológico. Agora, contribuiu muito para propinas. Há um descrédito da sociedade com as privatizações apressadas. Proponho que se faça um estudo e se procure mecanismos de modernizar o estado e abrir mais a economia para o mercado privado com ética e fiscalização da sociedade civil. Do contrário será uma nova derrama de ouro à la moda século vinte e um com sofisticação tecnológica.Myrna Maciel
Amigo Sérgio:
A comentarista Myrna Maciel está carente de alguma informação.
Sugiro que você a forneça, sugerindo três pontos básicos:
1) O preço de uma empresa a ser privatizada é simplesmente aquele que o mercado se dispuser a pagar por ela.
2) A privatização não é toque de magia, a ponto de resolver todos os profundos problemas de nosso país. Apenas ajuda.
3) Que caso poderíamos citar de uma privatização mal sucedida: Telefônicas? Siderúrgica Nacional? A saber.
Mayra
Com raras exceções, as empresas privatizadas melhoraram sim e muito o desempenho com benefícios para a sociedade e mesmo para os cofres públicos, na medida em que ampliaram os negócios e aumentaram a rentabilidade, gerando bem mais impostos do que pagavam antes em dividendos (quando tinham lucro, o que era raro). A contribuição para o crescimento econômico foi direta, em alguns casos, como a expansão dos negócios de telecomunicações e de mineração, como a Vale do Rio do Doce. O sucesso emblemático foi a privatização do sistema de telecomunicações. Você talvez não seja da época em que o telefone era um bem escasso e muito caro, além da péssima qualidade dos serviços. Houve momento em que uma linha custava 5 mil dólares e era um patrimônio que se declarava no Imposto de Renda, inacessível para a esmagadora maioria da população. Como você sabe, é raro o brasileiro que não tem, atualmente, um telefone celular para se comunicar, fazer negócios e usufruir de entretenimento. No caso da telecomunicação houve uma contribuição direta pela expansão dos negócios e seus impactos na arrecadação pública, mas também indireta na medida em que elevou a competitividade da economia pela melhoria do sistema de telecomunicação.
Houve demissão? Sim. Mas, além de demonstrar que a empresa estatal era pouco eficiente, tendo excesso de mão de obra, as demissões foram, na maioria dos casos, compensadas com indenização, incluindo demissão voluntária.
Houve corrupção? É possível que tenha havido favorecimento na montagem dos grupos concorrentes. Mas os preços do arremate de um lote de privatização eram definidos em concorrência aberta em leilão público, partindo de uma referência que resultava de uma avaliação técnica de patrimônio. E a corrupção permanente e continuada nas empresas estatais? A corrupção pra valer ocorria e ainda ocorre nas empresas estatais com a gestão entregue a políticos que utilizam o poder para práticas desonestas. O caso mais escandaloso foi a Petrobrás. Você tem razão, em todo caso, quando cobra fiscalização da sociedade civil aos mecanismos de privatização e mesmo ao funcionamento das estatais privatizadas. Um desses mecanismos foi criado no governo de FHC, especialmente quando se trata de oligopólios naturais, como a telecomunicação: são as Agências Reguladoras, instância de Estado com seus diretores com mandato, que se encarregam de controlar a qualidade dos serviços e regular os preços para conciliar a lucratividade da empresa e o interesse do consumidor. De forma bem resumida, é isso. Assunto para mais discussão.
Grato pelos seus comentários. Abraços, Sérgio
É isso aí. Totalmente de acordo. E se eu tiver que votar no Lula, se acaso chegar a ser só essa a possibilidade de tirar do Palacio do Planalto o atual PR idiota belicoso preguiçoso e incompetente, teremos que estar em alerta sobre a política econômica e perigo de retrocesso desde o primeiro dia de governo. E em alerta contra as investidas dos bolsonaristas, que não vão querer deixar ele governar, já agora dão preferência ao caos.