Vinicius Müller
Há um enorme risco enfrentado por aqueles que, munidos de suas ferramentas de historiador, escrevem a História do tempo presente. O risco envolve tanto a dificuldade em separar o que é histeria daquilo que é essencial, como também as pressões para que o envolvimento entre o analista e seu objeto seja mais íntimo do que a análise pode ser. Ou seja, que se transforme em militância.
Nem um nem outro é suficiente para desviar a atenção de Alberto Aggio nesse seu novo livro Ainda Respira…A Democracia sob Ameaça (Editora Appris). A obra é resultado de uma coletânea de artigos, ensaios e entrevistas já publicados, mas que agora ganham certa coesão e, melhor ainda, garantem uma revelação mais transparente do que pensa o autor sobre os últimos e confusos anos da história política brasileira.
Se o título do livro é ambíguo, o caminho percorrido não é nada trivial. Para traçar um perfil do que, de fato, esteve em jogo nos anos do governo Bolsonaro, Aggio apresenta uma estratégia intelectual difícil, seu antídoto à histeria militante. Não hesita em desfilar seu domínio sobre a história das ideias, destacadamente o arsenal legado por Gramsci – de cuja obra é um profundo conhecedor – e o usa para entender tanto a longa história do Brasil como as oscilações do governo Bolsonaro em sua alternância entre a ‘guerra de posições’ e a ‘guerra de movimento’. Também sabe que, ao enfrentar, como intelectual e como cidadão, estas oscilações internas a um governo de destruição institucional, como foi o de Bolsonaro, precisa da História na medida em que ela nos dá parâmetros que, contraditoriamente, limita e possibilita nossa compreensão. Assim, busca na reconstituição do conceito de populismo o equívoco de certa historiografia no entendimento sobre a América Latina, mas reconhece que dali derivam experiências fundamentais na construção do que entendemos ser a democracia contemporânea. É nesse ponto que o raciocínio agudo e multifacetado de Aggio se revela: se no pouco preciso conceito de populismo cabem as discussões sobre os caminhos que países como Chile (outra especialidade do autor) e Brasil tomaram, oscilando entre ditaduras e ambientes democráticos, os desafios atuais de ambos são diferentes. No Chile, a memória de um socialismo democrático, suspenso pelo golpe de 1973 contra Salvador Allende, não só pouco serve para entender os problemas de certo desajuste entre as condições internas ante os legados econômicos da ditadura de Pinochet e as condições externas propostas pela economia globalizada deste início de século XXI, como também alimenta, parcialmente, propostas equivocadas, mesmo que bem-intencionadas, de alargamento da cidadania no país. Já no Brasil, cujo desajuste é maior, certa confusão entre populismo e revolução mantém acessa a simpatia de partes da esquerda a saídas pouco democráticas.
O que o autor está apontando, de modo muito transparente em uma entrevista dada ao jornal Estado de São Paulo e reproduzida no livro, é que a leitura que parte da intelectualidade da esquerda brasileira faz de nossa trajetória está equivocada. Principalmente sobre o que seria nossa revolução inacabada. Para isso busca novamente em Gramsci o conceito de ‘revolução passiva’ e, em parceria intelectual com Luiz Werneck Vianna, acusa esta intelectualidade de desprezar a democracia como mediação e o reformismo como avanço. Portanto, lamenta a insistência anacrônica de certa esquerda brasileira em, por exemplo, apoiar governos autoritários e iliberais latino-americanos.
Este é um ponto sensível, na medida em que no curto prazo – ou na pequena política – qualquer voto que impossibilitasse a reeleição de Bolsonaro e seu iliberalismo antidemocrático e destruidor das instituições seria válido. Contudo, em prazo mais alongado – ou na grande política – a posição tomada por parte da esquerda brasileira, notadamente o Partido dos Trabalhadores e o lulismo, esteve em desacordo com os parâmetros institucionais que formam a matriz da Nova República brasileira. Ao se posicionarem contrariamente à Constituição de 1988, ajudaram a deslegitimar o que ela tinha e tem de democrática. Bolsonaro, portanto, é resultado de um jogo que começou a ser definido lá no início da Nova República. Neste sentido, é parcialmente resultado de um desajuste entre a matriz institucional que se pretende democrática revelada pela Carta de 1988, de um lado, e uma leitura equivocada feita pelo partido que mais tempo esteve no poder desde a redemocratização, de outro. Este é o vácuo que permitiu a ascensão de Bolsonaro.
Por isso, Aggio não poupa críticas avassaladoras, no curto prazo, à escolha de Simone Tebet como candidata à presidência por aqueles que deveriam atuar sob o horizonte da grande política. Por isso também sabe que, no curto prazo, a vitória de Lula – e, principalmente a derrota de Bolsonaro – garante que a democracia respire. Mas, no longo prazo a democracia precisa de uma cultura de mediação e de garantia de liberdades individuais como fonte do alargamento da cidadania. Ou seja, nossa revolução passiva. O iliberalismo autoritário e destruidor de Bolsonaro certamente não pode contribuir na construção desta democracia. Ao contrário, é uma ameaça a ela. Contudo, o iliberalismo contido em partes da esquerda brasileira e, certamente, no lulismo, no longo prazo também não contribui. A Nova República, portanto, pode estar com seus dias contados. E a democracia que ela preconiza respirando por aparelhos.
comentários recentes