Todo mundo sabe o que é um “charlatão”, mas nem todo mundo sabe como escapar de um. Curtas ou longas, as varas de pescar de um charlatão fisgam, sobretudo com palavras, as suas vítimas. Não por acaso. Na origem da palavra, na época medieval, como nos lembra o historiador Peter Burke, o termo “charlatão” era “[…] usado no verdadeiro sentido de um homem que ganha a vida conversando na praça, contando histórias ou vendendo remédios” (Cf. “A arte da conversação”). A etimologia também não deixa dúvida: é de conversa e de oralidade que se trata. Na verdade, as palavras de Burke também servem, se reparamos bem e consideradas “lato sensu”, sem qualquer negatividade, para ser aplicadas a políticos, influenciadores, apresentadores de TV, anunciantes, palestrantes de carteirinha. Para dizer tudo em poucas palavras: vivemos a era dos charlatões (ou charlatães, pois a palavra, malandramente, tem dois plurais!). E nós outros estamos aí para ser “levados na conversa”; somos, por assim dizer, sua massa de manobra, sua fonte de lucro.
O Brasil, ao que parece, sempre foi um território propício a charlatões de várias naturezas. Por que propício? A falta de educação e de espírito crítico são obviamente terreno fértil para os charlatões. Pra ficar no tempo presente, quando, de fato, o sentido de “charlatão” não guarda nenhuma positividade, basta lembrar o quanto se vende gato por lebre. Vejam o caso, por exemplo, de inúmeros pastores evangélicos e gurus religiosos que tanto frequentam púlpitos quanto páginas policiais. São puros charlatões vendendo o remédio da salvação para os miseráveis. Prosperam na boa-fé e na ignorância e, coisa curiosa, tornam-se “diretores de consciência”, papel que, na origem do protestantismo, foi tão combatido por Lutero ao defender a doutrina do “livre exame”. Ah, os intermediários, eles só morrerão com o próprio mundo.
A área política é outra muito propícia ao charlatanismo. Com boa ou razoável oratória, com narrativas que acariciam os ouvidos de seus eleitores, os charlatões da política também não jogam conversa fora, isto é, conversam bem, criam e contam histórias de encantamento para o homem da massa, uma criatura que, como bem observou o sociólogo Gabriel Tarde, segue como que “sonâmbula”, pronta para se imbuir de qualquer opinião, sem questionar, criticamente, se é verdadeira ou falsa. Vai na fé!
Por sua vez, a internet e as redes sociais trouxeram muita água ao moinho do charlatanismo, que, como na origem medieval lembrada por Peter Burke, virou meio de “ganhar a vida”. Claro, “ganhar a vida” é, muitas vezes, nem sempre, um belo eufemismo para enganar e ludibriar os outros. Charlatanismo é dinheiro, por isso é preciso estar “na praça”, onde o povo vive e os sentidos formam uma encantadora polifonia.
É verdade que muita gente morre pela boca, mas ainda mais verdadeiro é que muita gente morre pelo ouvido ou, como diz o povo, “emprenha pelos ouvidos”, expressão que também vem da Idade Média, quando teria sido questionada a gravidez da Virgem Maria; ela teria engravidado pelo ouvido e, assim, continuado virgem… No fundo, uma metáfora. Enfim, todo bom charlatão emprenha a sua vítima pelo ouvido, no que é fiel à etimologia italiana da palavra: falar, charlar. Aqui novamente temos um encontro da fé (e das crenças em geral) com a palavra falada; afinal de contas, como diz São Paulo (Rm 10,17), “Fidex ex auditus” (A fé procede da audição).
McLuhan foi pioneiro em nos apontar que a era gutemberguiana estava acabando, na medida em que o impresso deixava para trás sua centralidade. Agora, a oralidade retoma sua força original, se é que alguma vez a perdeu. Com razão, o historiador Theodore Zeldin observou que, quanto mais as pessoas ascendem no mundo profissional, mais elas escrevem e… falam… Por outro lado, não há dúvida de que a tagarelice, para o bem e para o mal, está aí, sempre perto da gente. Que o digam a televisão, os púlpitos, os podcasts, as lives, os vídeos e filmes das redes sociais. Por toda parte, há vozes que se dirigem a nós, vozes que nos dão versões, que contam histórias, que impulsionam nossos desejos, que cantam, que pregam e orientam e que preparam golpes sutis, armadilhas, panaceias, tudo movido por nossos desejos e nossas ilusões. A aldeia global é uma ruidosa aldeia de charlatões de todos os tons…
Isso traz recordações. Praça Dom Vital e o “Homem da cobra” com a pomada para reumatismo. 1971/2 largando mais cedo por falta de professor no Colégio Estadual de Pernambuco (depois retornou ao original – Ginásio Pernambucano) era uma verdadeira ebulição de cultura popular. No caminho a pé da Rua da Aurora para Mercado de São José, a obrigatória parada no Teatro Marrocos para ver o Cartaz com as fotos em preto e branco das dançarinas de “Teatro Rebolado”. Antes de atingir a maior idade derrubaram meu sonho de consumo juvenil. Após uma passada pela frente do Cinema Gloria onde havia um “trottoir alegre” era contar o dinheiro da passagem do ônibus e a sobra virava Caldo de Cana, com alguma sorte, talvez um pão doce, ou um Bolo de Bacia com generoso pingo de doce de goiaba (hoje cupcake), ou uma Broa também com doce de goiaba. Nunca duas ou três dessas guloseimas no mesmo lanche. Todo dia ao sair de casa ouvia as recomendações maternais “Cuidado com a Rua”; “Não pare no caminho”; “Atenção com os descuidistas”, esses ficavam por traz das pessoas aglomeradas no Homem da Cobra ou no imprensado do mercado “batendo carteira.” Hoje como nos livrar do batedor da economia popular, ditador dos juros no Banco Central?
Parabéns Paulo
Obrigado. Boas evocações