Pinóquio

Pinóquio

 

É provável que o florentino Carlo Collodi (1826-1890), jornalista, humorista e criador do primeiro jornal italiano para crianças, nunca tenha imaginado a larga e redonda fama de sua humilde criatura: o hoje célebre Pinóquio, um simples boneco de madeira que, sem pedir licença, veio integrar o imaginário fantástico das fábulas e das histórias de fadas e habitar para sempre o nosso cotidiano. Seu nascimento em livro deu-se em 1883, portanto está a comemorar 140 anos; antes, tendo seguido uma tendência da época, foi apenas um gracioso folhetim.

Pinóquio é sobretudo plástico, quer o olhemos do ponto de vista puramente material, quer o reviremos moral e semanticamente. É de se notar que a iconicidade do boneco não se dá apenas pelo nariz alongado como um exclusivo sintoma do mal moral que é a mentira, mas igualmente pela metamorfose de suas apropriações ou de suas, digamos assim, aparições. Del Toro, por exemplo, em sua recente animação musical premiada com o Oscar, imprime-lhe uma espécie de essência ao deixá-lo da cor da madeira, retirando-lhe todo o colorido infantilizador e pitoresco. Dir-se-ia que Pinóquio é intersemiótico pela própria natureza. No caso do filme de Del Toro, temos,  escusado dizer, um Pinóquio claramente antifascista. Como quer que seja, é fato que o boneco surge em nossa infância como surgem as nuvens, as ruas, as fadas e os jardins.

O curioso é que popularmente muitos retêm de Pinóquio o que ele menos é: um mentiroso. A rigor, ele é um irreverente e uma espécie de nômade, de alguém sem lugar, a exemplo de Dom Quixote. O boneco de Collodi mente muito pouco: apenas em duas ocasiões. Numa delas, embute-se, como veremos, o moralismo que também atravessa suas aventuras. Relembremos uma dessas curiosas passagens. O narrador registra: “[…] o nariz se encompridou de modo tão impressionante que o pobre Pinóquio não podia se virar de nenhum lado. Virava-se para cá, batia o nariz na cama ou nos vidros da janela; virava-se para lá, batia na parede e na porta do quarto; levantava um pouco a cabeça, corria o risco de enfiar o nariz num olho da Fada”.

A cena acima descrita pode ser cômica (não podemos esquecer que Collodi também foi um humorista), mas nos parece dizer que todo mentiroso é constrangido à imobilidade. O sintoma físico do boneco o distanciaria da coexistência com os demais. É possível que Pinóquio não minta tanto quanto ele mesmo gostaria justamente por ter se dado conta de que a mentira o imobiliza. E Pinóquio, de certa forma, é o contrário da imobilidade. Eis um oculto e encantador paradoxo de nosso amado boneco.

Pinóquio é todo ele mobilidade, mudança, metamorfose, plasticidade. Há em suas aventuras, além de objetos que “voam”, uma  velocidade que é um capricho da imaginação exuberante, e tal imaginação, por sua vez, ignora a prisão dos espaços físicos, criando uma geografia fantástica, a exemplo do “País dos Brinquedos” cuja utopia nos mergulha num prazer eterno, para não dizer fora do tempo.

Não obstante o mundo divertido e às avessas que o sidera, Pinóquio, à certa altura, exclama: “Estou cansado de continuar boneco!”. Seu bom coração, como o do Quixote, atrai o mal do mundo, torna-o visível, eis o cansaço. Neste passo, Collodi, como que sopesando um círculo pouco virtuoso, termina por ceder ao viés pedagógico e moralizante de grande parte da literatura infantil. O autor satisfaz assim dois desejos que convergem para um mesmo e único desiderato, pois “premia” o boneco, transformando-o em humano, e contempla a solidão de Geppetto, o artífice que, como um pai amoroso e preocupado, o havia criado “[…] para ser um boneco maravilhoso, que saiba dançar, esgrimir e dar cambalhotas no ar. Com este boneco quero dar a volta ao mundo para ganhar meu pedaço de pão e meu copo de vinho”. Ao perder sua função puramente utilitária, Pinóquio humaniza-se mais uma vez.

Collodi inventou uma história fantástica, irônica e divertida, na qual, em negativo, sente-se a opressão de um mundo já industrializado e voltado à grande produção, que vê o ócio como uma enfermidade a ser tratada: “O ócio [diz o narrador] é uma doença muito feia e é preciso curá-la rapidamente desde criança”. Mal imaginaria Collodi que, mais de cem anos depois, um seu conterrâneo, o sociólogo Domenico de Masi, faria o elogio do ócio criador… Não obstante a sugestão de De Masi, o ócio continua malvisto, e as crianças permanecem numa espécie de opressivo mundo de segundo grau. Pinóquio é um libertador, e suas “Aventuras” são uma obra aberta, como diria outro célebre conterrâneo de Collodi: Umberto Eco.