Alain (1868–1951), filósofo e escritor francês, registra que o imperador Marco Aurélio (121 d.C.–180 d.C.) dizia todas as manhãs: “Vou encontrar hoje um vaidoso, um mentiroso, um injusto e um tedioso tagarela; eles são assim por causa de sua ignorância”. Não é preciso ter se estudado muita filosofia para se notar que o eminente estoico falava como Sócrates, reeditava o grego com um pouco mais de colorido, isto é, tributava à ignorância dos citados tipos o mal que ostentavam em si: a vaidade, a mentira, a injustiça e, o mais inofensivo, embora talvez o mais aborrecido, de tais males: a tagarelice. Marco Aurélio também acrescenta um adjunto adverbial de tempo: “todas as manhãs”, logo: o mal, ou esse conjunto de males, é permanente, cotidiano, e dele não conseguimos escapar nem por uma singela manhã, mas, pelo contrário, temos que aprender a suportá-los de um modo, à falta de melhor palavra, estoico.
Há quem diga que, atualmente, o estoicismo voltou à moda como autoajuda para se suportar as dores “do que temos para o dia”. Oxalá não seja pretexto para fragilizar a empatia humana. Se não há como remover os males, por que não criarmos uma couraça? O “improvável” ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que não chegou a imperador (!) como Marco Aurélio, disse que possuía um couro de jacaré. Nesse sentido, uma couraça filosófica talvez saia mais em conta do que uma de jacaré e mais em conta ainda que uma medicalização excessiva, sem falar que a filosofia dá um lustre especial, pois contribui para o chamado “verniz civilizatório”, película que desde Freud sabemos frágil e doentinha.
Se Marco Aurélio vivesse hoje, é claro que, como imperador, teria o melhor smartphone do mercado. Talvez até deixasse de lado um pouco as suas meditações para se distrair nas redes sociais. Mas um demônio me faz imaginar coisa pior: e se o grande romano quisesse nos brindar cotidianamente com as próprias meditações? Logo veríamos que ele seria o primeiro vaidoso da sua manhã filosófica. Talvez nós, seus seguidores, logo tivéssemos consciência de que o imortal imperador estava se deixando levar pela tagarelice que tanto observava nos outros. No fundo, conversando com os seus botões (sim, já havia botões desde 3.000 anos antes de Cristo, e presumivelmente os mais tagarelas, ou os mais sábios, já falavam com eles!), terminasse descobrindo que seria vítima dos outros dois males de sua manhã incômoda: a mentira e a injustiça.
Não precisamos viver essas “manhãs de Marco Aurélio”. Nossos smartphones, a qualquer tempo, sobretudo por obra e graça das redes sociais, nos oferecem vaidade, mentira e injustiça numa profusão nunca antes vista. O bom Sérgio Porto, também conhecido como Stanislaw Ponte Preta, chamava a televisão de “máquina de fazer doido”. Imagino que menos do que nas imagens, o jornalista e humorista pensava na tagarelice enlouquecedora da TV. Quando nossa televisão fica em silêncio, pensamos logo que está com defeito… Mas a televisão, ao que parece, foi só um aperitivo do que viria com o smartphone e as redes sociais. Há mais tagarelas do que sonha a oportuna filosofia de Marco Aurélio e a atenção de nosso Ponte Preta. O historiador inglês Theodore Zeldin escreveu que uma história do mundo sob a perspectiva de tagarelas e lacônicos poderia ser bem interessante. Ingênuo mestre, esse ótimo Zeldin! Os lacônicos e silenciosos “perderiam” de lavada… Marco Aurélio, usando o melhor smartphone do mercado para filosofar, teria também torrado a nossa paciência, por mais que amássemos sua sabedoria.
Numa daquelas tocas maravilhosas de “Em busca do tempo perdido”, bem camuflada à sombra dos grandes temas, Marcel Proust, que tanto testemunhou avanços tecnológicos, pontuou muito bem, em “Sodoma e Gomorra”, sobre a ambiguidade desses avanços: “Os progressos da civilização permitem a cada qual manifestar qualidades insuspeitadas ou novos vícios que os tornam mais caros e mais insuportáveis a seus amigos”. O tempo haverá, seguramente, de desbastar o deslumbramento com as redes sociais e talvez corrigir o seu mau uso. Só não vai garantir que haja, para retomarmos a observação de Marco Aurélio, menos vaidosos, mentirosos, injustos e tediosos tagarelas. Enfim, as manhãs continuarão ecoando as palavras socráticas do imperador…
O poeta Paulo Gustado cita grandes filósofos com a mesma sabedoria deles. Observar o cotidiano com esse olhar relfexivo requer sensibilidade e um pensamento agudo sobre a nossa contemporaneidade.
Muito bom.
Lúcia Maia