Há 40 anos, numa manhã cinza e amarga, os chilenos acordaram com o pronunciamento grave e sereno do presidente Presidente Salvador Allende anunciando o golpe de Estado que terminaria com a curta experiência de socialismo democrático na América Latina. De dentro do palácio La Moneda, cercado pelas tropas golpistas e logo bombardeado pela Força Aérea, Allende afirmou, enfático, que cumpriria até a morte o mandato que lhe foi confiado pelo povo chileno e, num grito de dor e esperança, conclui: “Saibam vocês que muito mais cedo que tarde, outra vez se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor”.
Naquele dia nublado do final do inverno, o golpe militar de 1973 encerrou também um longo período da história política do Chile com uma tradição democrática, um dos mais democráticos países da América Latina, que parecia vacinado contra as fantasias populistas, e com forças armadas profissionais. E completou o ciclo de ditaduras militares da América Latina (a Argentina teria apenas um curto interregno de desastrado peronismo) superando em violência e destruição as ditaduras mais antigas do continente, violência que estava na proporção direta da força e da influência política da esquerda chilena, principalmente do Partido Socialista e do Partido Comunista, ambos muito bem estruturados e enraizados entre os trabalhadores e os segmentos médios da sociedade.
Eleito presidente em 1970, numa coligação de partidos de esquerda – Unidad Popular – e com um programa declaradamente socialista, Allende contou de início com grande apoio popular e com a simpatia ou tolerância de parte relevante da classe média, mesmo moderados e conservadores ligados ao Partido Democrata-cristão. Inicialmente, o Partido Democrata-cristão aceitava o governo de Allende e aprovou várias iniciativas políticas da Unidad Popular. Mas este ambiente durou pouco e a radicalização política substituiu a tolerância e superou o espírito democrático dos chilenos, menos por conta das reformas implementadas pelo governo popular e muito mais pela desorganização da economia chilena a partir de 1972. De início provocada por descontrole na condução da política macroeconômica, a crise econômica foi agravada por manipulações do mercado.
Em 1972 a inflação alcançou 200%, apertando os salários reais, o déficit do governo passou de 13% do PIB, comprometendo a capacidade de gasto e investimento público, e as reservas cambiais caíram para apenas 77 milhões de dólares. O governo tentou controlar os preços e os canais de distribuição de mercadorias gerando, como resultado, a intensificação da economia clandestina, do mercado negro e do açambarcamento de mercadorias por parte de comerciantes, grandes e pequenos.
No primeiro semestre de 1973 ficava claro que o Governo socialista não conseguia mais controlar a economia e perdia rapidamente a simpatia da classe média abrindo um processo acelerado de radicalização. Mesmo assim, em março, a Unidad Popular recebeu 44% dos votos nas eleições parlamentares, consolidando a base de apoio do governo de Allende num país totalmente dividido em paixões políticas. Durante meses, milhões de chilenas vinham às varandas e janelas, numa mesma hora da noite, batendo panelas num barulhento protesto conhecido como “panelaço”. Em meados de 1973, quase três anos de governo socialista, a economia chilena vivia uma profunda desestruturação: inflação acelerada, declínio da atividade industrial, déficit fiscal e esgotamento das reservas cambiais, desabastecimento e mercado negro de produtos e divisa.
Com a opinião pública dividida e a classe média assustada, as forças conservadoras deram o golpe fatal com a promoção de açambarcamento de mercadorias e a prolongada greve de caminhoneiros que agravou dramaticamente o desabastecimento nas cidades. A classe média e, com ela, a Democracia Cristã se aproximaram da direita e Allende perdeu o controle político do país, a esta altura, mortalmente fraturado em um violento antagonismo político e uma forte radicalização. E a Unidad Popular se dividia entre uma negociação política com os democrata-cristãos, defendida por Allende, ou pelo contrário, a aceleração das reformas, a ocupação de fábricas, e intervenção estatal no mercado. Grupos da direita fascista praticavam atentados e assassinatos, e os movimentos e partidos radicais de esquerda proclamavam a insurreição armada.
O golpe parecia iminente e inevitável. No caso de uma resistência armada, para a qual a Unidad Popular não parecia preparada, o mais provável seria uma guerra civil devastadora com limitadas chances de vitória do governo, a julgar pela desorganização e pela divisão interna nos partidos e grupos de esquerda. Allende deveria saber disso. Escolheu, ao contrário, uma resistência heroica e suicida do Palácio presidencial com apenas alguns próximos auxiliares como forma simbólica de defesa do mandato popular. E no seu discurso, o presidente ainda pediu prudência à população e recomendou que evitasse sacrifícios desnecessários mas que não se deixasse humilhar pelos golpistas.
No tumultuado inverno de 1973 não faltaram argumentos de partidos e líderes de esquerda a favor de uma insurreição que se antecipasse ao golpe, principalmente depois do fracasso do chamado “tancazo”, ensaio golpista desconexo e isolado do Regimento de Blindados nº 2 cercando o Palácio La Moneda para derrubar o governo. O levante foi abafado em poucas horas pelo General Carlos Prats, comandante das Forças Armadas e militar constitucionalista leal a Allende. Em resposta, quase um milhão de chilenos saíram em passeata em repúdio aos golpistas e apoio ao governo. Excitada, a massa gritava: “a cerrar, a cerrar el Congreso Nacional”, dando argumentos para os lideres mais radicais da Unidad Popular favoráveis à insurreição.
Allende insistiu no caminho constitucional e tentou aprovar o Estado de Sítio para desarticular o movimento golpista e enfrentar a os atos terroristas da ultradireita mas o Congresso de maioria opositora rejeitou. Nas vésperas do golpe, Allende pensou em anunciar um Plebiscito para que os eleitores decidissem o caminho a seguir diante do impasse político que dividia o Chile e numa última tentativa de impedir o golpe e recuperar a confiança política. Mas já era muito tarde e de duvidosa eficácia diante da dramática fratura política e da completa desestruturação da economia chilena.
A despedida de Allende foi um grito de otimismo mas parecia esconder uma enorme amargura. Amargura pelo final do seu projeto socialista, amargura pelo que deveria antever da violenta repressão da ditadura militar que iria se implantar no Chile. Amargura e decepção com a falsidade e a vilania dos comandantes das Forças Armadas, especialmente do General Augusto Pinochet. “Estas são as minhas últimas palavras e tenho certeza que meu sacrifício não será em vão. Tenho certeza que será, pelo menos, uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição”. Quarenta anos depois daquele discurso nobre e lúcido, e daquele gesto de coragem e honradez, as grandes alamedas se abriram e Salvador Allende se eleva como um dos grandes estadistas e humanistas das Américas, enquanto o seu algoz Pinochet tem seu nome jogado na lama da história como um dos mais violentos ditadores da América Latina.
Li Sérgio Buarque e, de cara, lembrei-me do meu mais estimado poeta da Mangueira, Nelson Cavaquinho:
“Sei que amanhã
Quando eu morrer
Os meus amigos vão dizer
Que eu tinha um bom coração
Alguns até hão de chorar
E querer me homenagear
Fazendo de ouro um violão
Mas depois que o tempo passar
Sei que ninguém vai se lembrar
Que eu fui embora
Por isso é que eu penso assim
Se alguém quiser fazer por mim
Que faça agora.
Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga,
Para aliviar meus ais.
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais”
Nelson e Allende continuam lembrados, Aquele mais do que esse, pois o poeta está em todas as rodas de samba, nos terreiros das Escolas, nos plangentes violões; o estadista, nas efemérides. Como agora.
Para Allende não houve flores de vida, nem pelos fascistas apoiados pela classe média que sentia na pele e nos bolsos que não ia dar certo. Nem pelo Black Blocs da época que queriam “aprofundar as conquistas” e fechar o Congresso Chileno. Muito menos pela paranoia do poder imperial do Grande Irmão do Norte, com o seu quintal ameaçado pelo grande Pai, Guia e Mestre da Classe Operária.
Meninos, eu vi. Será que verei?
Allende, Presente!
Nelson, Presente!
Bom senso, ausente?
Muito bom, Sérgio. Uma aula de história, ou como a história deveria ser ensinada. Abraços.
Sérgio: Bem que Guimarães Rosa dizia pela boca do seu jagunço: Viver é perigoso, patrão! Os exemplos se multiplicam e, no final, como ressalta em seu texto: os grandes estadistas e humanistas sobrevivem e os bandidos ditadores e ladrões mergulham no lamaçal da história. Seu texto lhe faz justiça. abraço de Ivan
Enquanto isso eu, nos meus 12 anos, fugia para o terraço de casa, tampava os ouvidos para não escutar o noticiário, com medo de uma notícia triste sobre meu querido irmão, que ali presenciava esse momento histórico. Felizmente, agora, 40 anos depois, tenho o privilégio de ler seu emocionante relato.
nao vi comentarios sobre o causador de tudo isso que sao os norte americanos, e quanto ao congresso chileno que o povo queria fechar o nosso ja devia esta fechado .
Magnífico, emocionante texto Sérgio. Concordo com a Luciana. Que bom que você está aqui para escrevê-lo. Mesmo destino não tiveram tantos que conhecemos e amamos. Grande abraço
Senhores:
A razão básica da queda do dr. Allende está definida pelo próprio articulista:
“Mas este ambiente durou pouco e a radicalização política substituiu a tolerância e superou o espírito democrático dos chilenos, menos por conta das reformas implementadas pelo governo popular e muito mais pela desorganização da economia chilena a partir de 1972. De início provocada por descontrole na condução da política macroeconômica, a crise econômica foi agravada por manipulações do mercado.”
Faltou ao presidente do Chile, quando do surgimento de sinais econômicos ruins, quem dissesse coisa similar à conhecida frase:
“It’s the economy, stupid”(James Carville, 1992, gerente de campanha de Bill Clinton à presidência).
Atte
Ednardo Souza Melo
Parabéns pelo belo artigo. Abraços. Rodrigo Aguiar
Excelente texto,uma bela aula de história!
Belo artigo do Sergio. Não precisa dizer que ele situava lá.
Como toda vez que lei sobre aquele dia eu faço duas perguntas: o que deveria ter feito Allende que não fez, e que não deveria ter feito que fez? E por que a direita chilena não esperou até o ano seguinte para vencer as eleições como provavelmente ganharia?
Caro Sérgio,
Em 1973, depois de ter passado um ano preso entre 1970/71 e retornado às aulas da Faculdade depois de dois anos, sofri,amargurado e impotente,nas trevas da ditadura daqui, a ditadura entrante do Pinochet e a saída derrotada mas altiva de Allende, encarnando um (nosso?)sonho de democracia socialista que era pura (e até ingênua?) demais para sobreviver ao maligno e todo poderoso imperialismo capitalista!
Seu artigo é sintético, objetivo e real. Gostei. Parabéns! Abração!
Só quem viveu o terror do Estádio de Futebol – e não estou falando dos meus times, o Náutico e o Olinda F.C, – sabe dos horrores de um campo de concentração cucaracho.
Como sabem os que estiveram em todas as masmorras do Cone Sul
João Rego, do Conselho Editorial desta Revista, havia me dito que Sérgio Buarque, um dos que sabe dessas coisas, iniciaria um debate sobre os quarenta anos do “suicinato” de Allende, assim como foi feito com o Primeiro de Abril.
Parece que, além disso, alguns comentários sintomáticos conduzem para uma atualíssima conversa dobre as origens das recorações casas dos mortos e reflexões sobre se a história se repete como farsa, ou não.
Eu inclusive. “En passant”, quem o leu, leu; quem não leu, lerá. Por falar nisso, prezado Nelson Faria Marinho quando me referi “ao poder imperial do Grande Irmão do Norte” isto se referia os ianques, para não confundir com outros norte-americanos como os mexicanos e canadenses. Por outro lado, ruim com este nosso Congresso, pior sem nenhum. Melhor ir às ruas, às urnas e à rede mundial de computadores para melhorá-lo.
Retomando:
Não creio na possibilidade de farsa histórica nesta altura do campeonato tecnologificado e globalizado. Creio em farsantes adaptados
Creio que o companheiro Obama não tem condições de ser um Bush, iraqueanizando a Síria e o Irã. Há outros meios na NSA para buscar petróleo sem mobilizar as gestapos e os SS locais.
Creio, pelos mesmos motivos, que a falta de bom senso é global. Em Santiago blackbloquers – seja lá o que for isto- nesses últimos dias, transformaram a cidade em campo de batalha e a polícia de lá, com a daqui desceu o cacete, pois isso é da natureza da repressão, nunca exercida sem “excessos”.
Creio, como diversas comentaristas ao artigo de Sérgio Buarque, que a síndrome da revolução caribenha obnubilou o pensamento esquerdista nos anos sessenta quando tentávamos “aprofundar as conquistas”. Mesmo a União Soviética- o “Grande Pai, Guia e Mestre da Classe Operária” (atenção, Nelson) não levava isso a sério e não tinha grana para sustentar várias Cubas, bem maiores. O próprio Prestes um dia saiu de Moscou e foi levar um papo com Fidel sobre isso. Eu não ouvi, mas Maria, a mulher dele, contou em seu livro biográfico. Quem não o leu deveria ler. Tem muita história e casos que o leitor, ao conhecê-los, dirá: “Porra, e eu não sabia”!
Creio que não adiantou a autocrítica do PCB, depois de 1954, quando outro imolado, o não socialista e caudilho Getúlio Vargas tombou no Catete e nos dias anteriores as manchetes do jornal do Partidão e o de Carlos Lacerda pareciam tem sido escritas de comum acordo.
Creio que as políticas econômicas influenciadas pelos marcoauréliostop-top no mesmo Cone Sul já referido, não resistirão ao aparelhamento gossplaniano, com inflação, falta de competitividade, juros crescentes, esvaziamento dos dólares em caixa, ao preço artificial da gasolina, aos paliativos microeconômicos e lá vai fumaça.
Pensando bem, ao digitar em voz alta, será que as classes médias, a velha e a nova, deixar-se-ão seduzir pelas vivandeiras dos cães açulados e a farsa virar tragédia como dizia um preclaro cientista social do século dezenove
Cala-te boca! Descansem dedos. Fiquemos atentos.
Uma questão que parece já convencionada é que o traumático golpe no Chile seria mais um desfecho de um processo anunciado diante da política norte/americana de não permitir uma experiência de socialismo pela via democrática na América do Sul. Isso é verdade e estava dentro da política da Guerra fria. Com um programa muito menos radical Goulart foi derrubado. O que o excelente artigo de Sergio também revela é a contribuição da estraégia dos grupos mais radiais de esquerda para perda do apoio da governo da Unidade Popular entre a classe média. É preciso lembrar que Allende foi eleito sem maioria absoluta e, por isso, teve de buscar o apoio da Democracia Ctistã para o segundo turno, que, de acordo com a Constituição, deveria ser realizado por eleição no Congresso Nacional. A partir daí o seu progrma de governo teria que ser uma média entre a Unidade popular e a Democracia Cristã. Não estou afirmando que tal postura evitaria o golpe,uma vez que,também é verdade que a direita não se deu ao trabalho de esperar pelas eleições que ocorreriam dentro de um ano, onde teria grande chance de vitória. O que é certo, no entanto, é que o imenso cabedal acumulado pela esquerda e pela figura emblematica de Salvador Allende chegou ao fim bem esvaziado pela pressa de uma proposta muito além da média da sociedade chilena.Condição aproveitada pela extrema direita para instaurar a barbárie que foi o movimento militar chileno, onde pessoas da classe média que antes discutiam democraticamente as idéias postas pela unidade popular, pasaram a apoiar os militares, chegando,de forma histérica, a apontar casas onde residiam estrangeiros exilados de outras ditaduras da Al.
Grato a todos pelos comentários que, além de elogios, complementam e ampliam o debate sobre a experiência socialista do Chile e as circunstancias que levaram ao golpe de Estado e à ditadura. Tem um aspecto que pretendia ressaltar no artigo e que, do meu ponto de vista, criou as condições políticas para o golpe: a desorganização da economia com inflação descontrolada, desabastecimento e mercado negro. Foi esta situação que, segundo penso, provocou a radicalização política da classe média, que dificultou a aproximação com a Democracia Cristã. Claro que a direita e os americanos ajudaram a acelerar esta crise, sabendo do efeito político na sociedade; mas a origem da desorganização da economia, me parece, está na incapacidade do governo Allende promover reformas sociais com estabilidade macroeconômica. A classe média, de um modo geral, não se opunha a reforma agrária, estatização, etc. desde que não comprometesse sua vidinha nas cidades. Associado a isso, a radicalização de setores organizados da esquerda e da direita criou o ambiente político e psicológico que faltava. Conclusão: o grande desafio (e não é fácil) de um governo socialista (ou seja la que nome dermos às transformações sociais, não confundir com as gambiarras imediatistas dos governos do PT) esta em implantar as mudanças sem ameaçar a estabilidade econômica.
Tenho tido a oportunidade de usufruir dos teus últimos escritos e este, corrobora teu talento em contar histórias e nos comover. Na época do golpe do Chile estava na prisão e lembro-me bem do choque e da tristeza profunda por mim vivida. Não que houvesse nos surpreendido, já que a gigantesca demonstração de forças da direita boicotando qualquer iniciativa do governo Allende e a impotência (mais do que capacidade) da esquerda em responder a isso, já apontava esta possibilidade. A tristeza se deveu à mais um desmanche do sonho. Apesar de tudo, percebe-se hoje, olhando para o Chile, que essa experiência fantástica e ao mesmo tempo trágica, não foi em vão.