Lisboa. Frei Luis Ponce de Léon era, desde 1561, catedrático de Teologia na Universidade de Salamanca (Espanha) ? famosa inclusive por ter como símbolo, a partir do bestiário medieval, uma rã. Processado em Auto de Fé, pela Inquisição espanhola, foi retirado a meio da classe; e permaneceu preso, em Valladolid (capital da comunidade autônoma de Castilla y León), de março de 1572 a dezembro de 1576. Mas acabou, no fim, declarado inocente. Em seu primeiro dia de volta ao ofício de professor, e como prova de prestígio, todas as figuras ilustres da universidade estavam presentes para ouvi-lo. Mas o dito frei, em vez de protestos ou lamentos, apenas sorriu, falou “Como estava dizendo na última aula…”, e seguiu na lição interrompida.
Mais tarde, ficaria Salamanca marcada por outro episódio; quando em 12/10/1936, na Guerra Civil Espanhola, o general falangista (José) Milán-Astray gritou, numa de suas salas, “Viva la muerte”; com protestos, imediatos e fortes, do reitor perpétuo da universidade, Miguel de Unamuno. Em vez de silenciar, como recomendariam todas as regras do bom-senso (Baltazar Gracián y Morales até escreveu livro sobre isso, A arte da prudência), reagiu, porque “permanecer calado equivale a mentir”. E acabou nas masmorras, mas essa é outra história. Voltando à citação inicial, ela tem sobretudo o papel de marcar a sagração da palavra. Reconhecendo ser o que fica de importante, na vida ? ela e seu irmão inseparável, o exemplo. Indicando caminhos.
Essa introdução, maior talvez do que deveria, tem apenas o sentido de anunciar que já está no prelo, pela editora Paradoxum, o primeiro livro de Samuel Hulak no campo da literatura, Na contramão e outros contos.
Se ficar só nele (quase um pecado), não seria caso isolado. Walt Whitman escreveu um único livro, na sua existência, Leaves of grass (Folha de relva). A cada nova edição ia alterando, acrescentado ou suprimindo poemas. A primeira (de 1855), com 91 páginas, apenas tinha 12; a segunda 32, com o famoso Salut au monde (O take my hand, Walt Whitman), que inicialmente seria Poem of salutation; a nona e última, 293. Além de uma Death Bed Edition, de 1892, a impressão definitiva. O mesmo com Cesário Verde; dando-se que, no seu caso, foi até sem querer, por tratar-se de outra edição póstuma ? O livro de Cesário Verde, produzido por mulher e filha, reunindo tudo que deixou.
Margareth Mitchell escreveu Gone with the wind (E o vento levou), ficou rica e, desgraçadamente (para ela), logo morreu atropelada por um taxi. Enquanto Emily (uma das irmãs) Brontë mereceu glória breve com O morro dos ventos uivantes; logo sucumbindo, num tempo em que ainda não havia estreptomicina, a uma tuberculose devastadora (o mesmo mal que vitimou as outras filhas escritoras, Anne e Charlotte, do Reverendo Brontë).
Manuel Antônio de Almeida, amigo de Machado de Assis, começa Memória de um sargento de milícias dizendo “Era no tempo do rei”. Mas seu tempo era curto pois, em seguida, morreu afogado no naufrágio do Hermes; e, também ele, ficou neste primeiro livro. Enquanto Augusto dos Anjos nos deixou depois de EU. Ao mandar os originais para a tipografia (sem registros de editora, por ser uma edição doméstica), rasgou a mão com faca e, usando seu sangue, escreveu o título. Assim diz a lenda. Razão pela qual, até hoje, suas edições tem capa clara e título em vermelho. Cor de Sangue. E se foi cedo, aos 30 anos, pena. Tudo isso apenas para dizer que, espero, Samuel não precise usar seu precioso sangue para escrever título nenhum (até por ser, o deste livro, bem maior que as duas letras de EU). Nem faça parte dessa relação de autores com um livro único.
Também cumpre lembrar que o autor escreve esse livro tarde, com 86 anos. Mais uma vez não é caso isolado. Só para ficar na literatura brasileira, antes dele já Pedro (da Silva) Nava escreveu seu primeiro grande livro de memórias, Baú de ossos, com 69. Médico, nos deixou uma obra monumental em sete livros. E mais não foram porque recebeu um telefonema misterioso (até hoje não se sabe de quem) e, com 81 anos, deu um tiro na cabeça. Já Cora Coralina (Anna Lins de Guimarães Peixoto Bretas), apesar de escrever poemas esparsos desde a adolescência, decidiu publicar seu primeiro livro, Poemas dos becos de Goiás e histórias mais, com 76 anos. Doceira, pessoa simples e morando longe dos grandes centros, retratou como ninguém a vida nos interiores de nosso Brasil popular e profundo em nove livros. E morreu com 95 anos, de pneumonia. Muitos outros escritores também lhes seguem.
Para ficar só num caso lembro dona Maria Lia Cavalcanti que lançou seu primeiro e único livro, Recordar é viver, com 92 anos, em textos muito bem escritos sobre as memórias da família. Um dia, para nossa mãe, escrevi esses versos
Me diga dona
Maria Lia
Luar da noite
Flor do meu dia
Se brilha ainda
A luz infinda
Que eu perseguia.
E hoje sei que viverá para sempre, majestosa e tocada pela eternidade, essa luz que não cessará de brilhar em nossos corações.
Saramago pergunta, no início da apresentação que escreveu para um livro de Sábat (Anônimo transparente), “Que retrato de si mesmo pintaria Fernando Pessoa?”. Lembro dessa passagem para fazer a mesma pergunta, com Samuel Hulak no papel do poeta português. Certo já de que sua resposta, qualquer que seja, iria surpreender. Posto ter dito autor o dom de construir, de forma invulgar e competente, suas histórias.
Mas quem é mesmo Samuel Hulak?, eis a questão. Em poucas linhas, trata-se de médico especialista em Psiquiatria. Atuou nos palcos (com prêmio de melhor ator) e foi diretor do Teatro do Estudante Israelita, além de participar em peças das televisões. Sem esquecer, ainda é compositor de músicas sinfônicas interpretadas por diversas orquestras. Uma vida, com certeza, incomum. E, antes desse livro de agora, escreveu artigos científicos, publicados em revistas especializadas; e, mais, Elementos da Psicoterapia (1976); Entrevista, mitos, métodos e modelos (1986); e um capítulo (VI) no livro Psicossomática hoje (1992), editado por Júlio de Melo Filho, só livros técnicos.
“E de repente, mais de repente”, assim Pessoa diz em sua monumental Ode marítima (quase o mesmo que Vinícius de Moraes escreveu depois, no seu Soneto da separação, “E de repente, não mais que de repente”), de repente, pois, Samuel decidiu escrever contos. O que é surpreendente, dado seu tardio começo na atividade literária. Alguém que jamais escrevera nada parecido, antes, por que o fez agora? Mistério. Embora mistério maior, aquele que poucos poderiam esperar, é a qualidade (muito) superior dos seus textos.
O escritor Theóphile Gautier foi ver As meninas, de Velasquez. Passou horas contemplando cada detalhe da tela e, no fim, perguntou “Mas onde está o quadro?”. Uso essa metáfora, que ouvi do escritor português António Lobo Nunes, apenas para perguntar, depois de ler esse Na contramão e outros contos, “Mas onde está o livro?” Melhor resposta seria dizer que está em cada pequeno roteiro do autor. Nas tramas. No inesperado. Mas prefiro recorrer a Érico Veríssimo (em Todos nós somos um mistério), “Na minha opinião, existem dois tipos de viajantes: os que viajam para fugir e os que viajam para buscar”.
Samuel faz parte do último grupo. E escreveu esse livro com certeza só para provar, a si mesmo, que tem o dom especial de contar histórias. “A identidade é uma trajetória”, dizia Michel Foucault (Vigiar e punir). E essa identidade nele, a partir de agora, é ser reconhecido como um grande escritor. Enorme. Estelar. Para mim, o maior contista do Brasil.
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