Vladimir Nabokov, em sua obra “Lições de literatura”, sentenciou numa imagem de grande síntese e completo acerto: “Proust é um prisma”, não obstante algumas solenes tolices que alinha sobre o autor de “Em busca do tempo perdido”. É justamente por ser um “prisma” que Proust se antecipa, com uma nova sensibilidade, à grande literatura do trágico, irônico e complexo século 20. Nesse sentido, nunca devemos esquecer que, ao lado de seus contemporâneos, o escritor testemunhou a “Grande Guerra”, como foi inicialmente chamada a Primeira Guerra Mundial, conflito a que ele também deve, como se sabe, a extensão do seu romance. Foram quatro longos anos de sofrimentos nunca vistos. Enquanto o mundo se acabava, Proust, que neste 10 de julho completaria 153 anos, escrevia sua obra imortal, misto de mausoléu e de palácio, de templo e de prostíbulo, de crepúsculo e de alvorada. Obra a seu modo épica, como o proclama um de seus maiores especialistas: Jean-Yves Tadié.
Romance enciclopédico, como disse Italo Calvino; livro, como lembrou o crítico francês Georges Cattaui, que bem poderia se chamar “das metamorfoses”; polifonia da memória, romance de formação e obra precursora de Sigmund Freud, “Em busca do tempo perdido” é, a rigor, inclassificável. Depois de dois livros de ficção fracassados, depois de errar por caminhos adversos, Proust cria a sua própria fonte em cujas águas muita gente, para não dizer gerações, irá beber com sofreguidão. Proust, como escreveria Virginia Woolf, uma de suas grandes leitoras, “é tão sólido quanto uma tartaruga e tão evanescente quanto a perfeição de uma borboleta”. Por vezes, rende-se homenagem à sua evanescência, esquecendo-se da sua solidez…
Uma certa imagem edulcorada do escritor é uma espécie de meia-verdade que falsifica seu verdadeiro entendimento. Ela vem de um imaginário popular que o vê aveludado, aristocrático, dissolvido em refinamentos e delícias crepusculares. Proust é muito mais que isso. É preciso vê-lo “em ação”, flagrando as contradições humanas, exibindo as entranhas mesquinhas dos salões e dos grupos sociais; é preciso vê-lo do seu prisma absolutamente moderno; é preciso vê-lo gargalhar dos “poderes constituídos”, ser o iconoclasta que tanto contrasta (pelo menos em aparência) com seu célebre retrato de flor à lapela. Proust é o antipreconceito: ele se abre à sociedade com sensibilidade e desejo de compreensão, é um ser que transita entre mundos. Aproximou distâncias, fez-se sábio, como preconizava Pascal, por zombar da sabedoria. Proust não é só delicadezas florais e degustação de madalenas transcendentes, é irreverência e ironia. Não pouca ironia, mas muita ironia. Em certo sentido, é superior a outra glória da França: Montaigne.
Por ser prisma, Proust decompõe a luz que vemos e na qual vivemos. Nós vemos pouco, e ele vê muito. Como disse André Gide: “Ele é alguém cujo olhar é infinitamente mais sutil e mais atento que o nosso e que nos empresta esse olhar durante todo o tempo em que o estamos lendo”. Por ser prisma, ele é sempre múltiplo e, por isso, sabe nos apontar nuanças que de outro modo ficariam invisíveis a nossos olhos.
A exemplo de autores como Henry James, Wittgenstein e Balzac, Proust inspira cultos em todo o mundo, tem seus apóstolos, seus discípulos, leitores cheios de fervor. “Em busca do tempo perdido”, dentre tantas coisas que é ou pode ser, também é uma espécie de bíblia profana, um livro feito de livros e que tem igualmente suas parábolas, seus ensinamentos, suas narrativas míticas e fundadoras, seus salmos eternos… A propósito, François Mauriac, Nobel francês de literatura de 1952, escreveu que “Deus é terrivelmente ausente da obra de Proust” (Mas por que deveria estar presente? Estaria mesmo ausente?). Filho de mãe judia (e portanto judeu) e pai católico, o agnóstico Marcel Proust, talvez seguindo antigos sábios gregos, preferiu a dúvida e a “suspensão do julgamento”, e é provável que, se acaso tivesse levado Deus para dentro de sua obra, não teria escrito com a liberdade com que escreveu. Sua religião e sua vida têm apenas um nome, ou dois se optarmos pela redundância: arte e literatura. Por isso, para falar como Balzac, Proust se afasta de qualquer “advocacia”: expressou seu gênio e, ao expressá-lo, foi pioneiro, como observou outro crítico francês, em levar a poesia para dentro do romance. Ao que parece, a poesia se deu muito bem.
Ler e reler Paulo Gustavo sobre Proust é sempre um aprofundamento não só na grande obra proustiana, mas na literatura como um todo. Sua ampla visão literária ilumina o leitor e desperta a sede desses textos todos por ele citado. É um deleite lê-lo.
É preciso ler Proust. ⚘️
Sempre um prazer ler seus textos! Fico logo querendo voltar a Proust…