Guardião

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Daqui pra frente, só haverá boa política se a questão ambiental se impuser como prioridade absoluta. Como apontado no livro de Jó, é preciso que os males toquem na pele de cada um, que a mera ameaça se transforme numa realidade pessoal e íntima. É preciso tremer, sofrer na própria carne frágil: “Estende a mão, toca-lhe nos ossos e na carne e verás se não blasfema contra Ti” (palavras de satanás a Deus). Se a natureza sempre exibiu uma visível indiferença ao ser humano, não obstante algumas núpcias ocasionais, agora essa indiferença parece responder à indiferença (e seu cortejo de agressões) do próprio ser humano para com a natureza.

A crise hídrica por que passamos golpeia o País abaixo da cintura. Ao que parece, uma “tempestade perfeita” surpreendeu a todos. Num país habituado a tantas “tempestades”, quase todas sempre negligenciadas, a surpresa propicia um ar de pureza e candura. Ar falso e irrespirável. O governo, atônito, é pego de calças na mão. Os parlamentares, tomados por uma mudez estratégica, passam, cada um a seu modo, a boiada dos seus interesses pessoais. Estranhamente, é um ministro do Supremo, Flávio Dino, que diz, antes que a toga pegue fogo, para o governo se mexer e botar água nas chamas. Enquanto isso, milhões de brasileiros respiram fuligem e rezam para que sobrevenha uma “salvadora” chuva preta…

Em tempos de mitos tão falsos como notas de três reais, permitam-me citar o mito e rei Roberto Carlos, que tem palavras tão antigas quanto oportunas ao presente caso. Ei-las: “Daqui pra frente / Tudo vai ser diferente / Você tem que aprender a ser gente”. E essa diferença tem que ser marcada pela posição política prioritária da questão ambiental. Talvez assim aprendamos “a ser gente”. Por um caminho ou outro que se siga, tudo, mas tudo mesmo, será diferente.

Atribui-se ao grande poeta francês Paul Valéry uma boa tirada: “O problema do nosso tempo é que o futuro não é mais o que costumava ser”. Tanto obcecadamente se fala em futuro que, no caso da crise climática, também acontece o mesmo: a desgraça prevista para décadas à frente brota em chamas neste momento; antecipou sua chegada. De tanto o futuro estar presente, não haverá mais futuro! Em sua coluna no portal UOL Ecoa, de 13 de setembro, Carlos Nobre, cientista de renome internacional e um dos chamados “Guardiões Planetários”, observa: “A ciência climática do mundo inteiro não previa uma aceleração tão intensa das mudanças climáticas como temos visto recentemente […] Ninguém esperava que as temperaturas globais fossem explodir e ficar 1,5º C mais quentes”. Enfim, nada risonho, o futuro antecipou-se.  Ao comentar que já estamos convivendo há um ano com temperaturas acima de 1,5º C, Nobre complementa: “A Terra só viu algo parecido no último período do [sic] interglacial, 120 mil anos atrás”.

Ao confessar que tal situação o “apavora”, um desolado Carlos Nobre registra que as emissões de gases de efeito estufa continuam aumentando e que se para o ano continuar assim, acima da meta do Acordo de Paris (uma planejada redução de 28% a 42% até 2030), “pode ser tarde demais”. Adeus, Amazônia. Adeus, Pantanal. O que já está muito ruim vai ficar péssimo. Se até 2100, a temperatura global aumentar, uma boa parte do planeta, “incluindo o Brasil”, adverte Nobre, “pode se tornar inabitável”. As medidas a serem tomadas, lembra o cientista, têm que ser “rigorosas”, “imediatas” e “eficazes”; nada, portanto, que interesse a candidatos no guia eleitoral e a nossos bovinos parlamentares, com as exceções da regra.

Em meio à desolação, para descontrair, lembramos uma anedota. Conta-se que, certa vez, correram para avisar ao dramaturgo Bernard Shaw que o mundo estava se acabando, ao que o famoso escritor respondeu de pronto: “Melhor, passaremos sem ele!”. À parte o fundo idealista da anedota, melhor mesmo seria, como diz Roberto Carlos, “aprender a ser gente” e priorizar as questões climáticas. Sugiro cursos intensivos, com o ministro Flávio Dino, “data maxima venia”, como professor visitante.