Para dosar com ironia e clemência o começo deste artigo, valho-me do humor de Oscar Wilde (1854–1900): “Nunca deixe de perdoar seus inimigos — nada os aborrece tanto”. Em seguida, como vocês verão, farei uma parceria com Umberto Eco (1932–2016): sobre os ombros desse gigante, contemplaremos juntos nosso incômodo tema.
Antes de ecoar o saudoso Eco, talvez convenha lembrar que um dito árabe é magnífico e magnânimo em sua sabedoria prática, pois nos faz um bom alerta nestas poucas palavras: “Mil amigos é pouco, um inimigo é demais”. Com efeito, o que está por trás desse sábio aviso é que a existência humana por si mesma é difícil e que, numa dose desmesurada, também reclama auxílio, compreensão e conforto emocional. Nosso rei Roberto Carlos (1941) foi além dos antigos árabes e mandou bem ao cantar que queria ter “um milhão de amigos”!…
“Um inimigo é demais” nos mostra toda a ameaça em potencial que pode vir de uma inimizade. Daí que se fale tanto numa estratégica “escolha” de inimigos, como se nos valesse uma simetria de forças, uma equação de mal-estar. O que toda a história humana nos aponta é que praticamente não se vive sem inimigos. Até um pacifista como o filósofo e matemático Bertand Russell (1872–1970) entreviu essa dura realidade: “Amamos aqueles que odeiam nossos inimigos, e se não existissem inimigos haveria muito pouca gente a quem amar”. Por outro lado, mansos criadores de filosofias e religiões, a exemplo do aniversariante do mês, sugeriram amar os inimigos, mas logo foram desmentidos por uma posteridade belicosa e cruel.
Numa conferência na Universidade de Bolonha, em 2008, posteriormente publicada no livro “Construir o inimigo e outros escritos ocasionais” (Rio de Janeiro: Record, 2021), Umberto Eco nos leva em viagem histórico-social por uma construção do inimigo. Nas entrelinhas de seu texto, repercute um Heráclito (c. 500 a.C. – 450 a.C.) menos citado do que aquele que não se banha no mesmo rio duas vezes: o Heráclito que diz que tudo resulta de um conflito, de uma guerra entre opostos.
Eco começa pela própria casa, a Itália. Não tem ela inimigos externos permanentes, mas, diz ele, os italianos há muito tempo lutam entre si: nortistas contra sulistas, fascistas contra “partigiani”, máfia contra Estado… E logo nosso semiólogo afirma: “[…] convenci-me de que uma das desgraças do nosso país nos últimos sessenta anos é justamente o fato de não ter inimigos”. À falta de inimigos externos, surgem ou se criam os internos. O que lembra o Brasil, cujas Forças Armadas, pelo menos desde a Guerra do Paraguai, não têm um inimigo externo e, por isso, como provam os golpes militares ou suas grotescas tentativas, sempre estão de olho em inimigos internos, muitas vezes só imaginários.
Aponta-nos o autor italiano que “constrói-se” o inimigo, e isso é “importante não somente para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores”. Se “o inimigo não existe, é preciso construí-lo”. Existindo ou não, assim foi entre cristãos e pagãos, entre bárbaros e gregos, entre judeus e cristãos, entre brancos e negros. O inimigo é “naturalmente” feio, disforme, fétido, monstruoso, tem um sotaque que fere os ouvidos, como Ricardo Wagner (1813–1883) dirá dos judeus, aos quais negou qualquer vocação para o canto. Hitler (1889–1945) também é lembrado por Eco. O líder nazista falsa e pitorescamente culpava a indumentária pela aproximação amorosa dos judeus às alemãzinhas do tempo: “Se hoje em dia a perfeição corpórea não tivesse sido relegada ao segundo plano por nossa moda descuidada, centenas de milhares de moças certamente não teriam sido seduzidas por asquerosos bastardos judeus de pernas tortas”. Simples e delicado, não?
A posição social inferior fertiliza o surgimento de inimigos, afinal de contas, justamente por serem “inferiores”, são feios e beiram a delinquência, se é que não chafurdam nela, a exemplo das prostitutas, dos delinquentes natos, dos leprosos e das bruxas. Sobre estas, satanizadas pela misoginia e pelo preconceito social, Eco nos recorda “o infame ‘O martelo das feiticeiras’”, obra de 1486, que, por assim dizer, celebra os mil modos de construir essas “inimigas” da humanidade. O historiador Jules Michelet (1798–1874), ressalte-se, em seu famoso livro “A feiticeira”, desconstruiu e varreu para sempre toda a carga negativa dessas mulheres injustiçadas.
Para despir a figura do inimigo de seus clichês acumulados pelos séculos, o autor de “O nome da rosa” se pergunta se haveria uma impotência da ética. E belamente responde que “[…] a instância ética não surge quando não existem inimigos, mas quando se tenta entendê-los, colocar-se em seu lugar […] Tentar entender o outro significa destruir os clichês a seu respeito, sem negar ou apagar sua alteridade”. “Perfetto. Grazie mille”, meu admirado Eco!
Bem, comecei com o bom humor de Oscar Wilde e agora peço para terminar com um gracejo não menos irônico: “Que Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu”. É de outro mestre da ironia: Voltaire (1694–1778).
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