Psiquiatra e psicanalista renomado, o escritor pernambucano Marcos Creder lançou há pouco sua terceira obra de ficção: a novela “Aurora escura, cor de chumbo”, cujo título por si só abre uma paradoxal clareira de sentidos, anunciando mais do que à primeira vista se pode considerar. Essa “aurora” sem “róseos dedos” já nos antecipa a densidade de um claro-escuro que permite uma inquietante gradação. Essa “aurora” é, por assim dizer, a própria atmosfera temática da novela: o tempo infantojuvenil de formação do seu herói, Alberto. Até aí nada demais. O que ficará claro após a leitura do livro é a refinada técnica com que o autor constrói sua ficção.
O primeiro refinamento é o tratamento do tempo novelesco. Não por acaso, Creder põe como epígrafe do seu livro uma citação de Guimarães Rosa: “Como vivi e mudei, o passado mudou também”. O que significa: Marcel Proust com sotaque rosiano. O tempo é encarado pelas lentes da subjetividade: é pontilhado, subvertido, introspectivo (mas felizmente longe de uma introspecção exacerbada), poroso em sua densidade poética. Para tanto, colabora o ponto de vista bifocal, que faz a narrativa avançar ora em primeira pessoa, ora em terceira pessoa. Mas quem será esse narrador em terceira pessoa, se ele não se assume como o próprio Alberto, criança e jovem? O nebuloso da transição etária guarda o movimento e o sabor aleatório do tempo. Alberto, aberto!
Quanto aos personagens, o tímido Alberto faz-se acompanhar dos pais e das primeiras amadas; os demais são praticamente figurantes ocasionais. O amor requer por vezes lenta e diversa iniciação. A novela de Creder mostra o jovem protagonista como um ser aberto aos tateamentos do desejo. Entre a inocência e o aprendizado, há uma deambulação amorosa, uma expectativa pelo grande encontro, quando, em verdade, nunca existindo este, cada encontro lhe proporciona um pouco mais de conhecimento do mundo misterioso das mulheres. Seu “drama” é de ordem epistemológica e existencial: o da inquietação, para o qual a literatura seria um balsâmico espelho. Alberto sonha em ser escritor, admira os escritores, e, por isso mesmo, sua história é repleta de referências literárias: Pinóquio, Quixote, Bocaccio, Chaucer, Shakespeare, Dante, Conrad, Thomas Mann, Borges, Nelson Rodrigues e Albert Camus, a este último o herói deve seu nome. Mas é sobretudo em Proust, não citado no texto, que a novela faz pensar.
Um traço estilístico proustiano é, como se sabe, a presença da metáfora; como diz o autor de “Em busca do tempo perdido”, “ela dá eternidade ao estilo”. Presença que não é excessiva, embora continuada. Como já acentuou a crítica literária há mais de meio século: criando novas e poderosas metáforas, Proust levou a poesia para dentro do romance. A seu modo, Guimarães Rosa fez o mesmo. (Não se trata aqui, claro está, da famigerada e falsa “linguagem poética”!) Guardadas as proporções, Creder também o faz com raro bom gosto: sua novela é um belo poema em prosa, e a adolescência angustiada de Alberto, a nossa própria adolescência. A busca de Alberto, nossa própria busca. Somos tomados de uma suave nostalgia.
Não é fácil ou comum, convenhamos, traduzir impressões, emoções e sentimentos com “palavras memoráveis”, signo da poesia, conforme uma concisa concepção do escritor francês Claude Roy (1915–1997). Palavras que soam tão bem à razão quanto ao próprio coração, unindo a paixão e a análise. Insuflar-lhes vida é quase um achado, sem deixar de ser um dever do poeta. Alberto, como o herói da “Busca”, sente em si mesmo uma vida interior intensa, tocada de curiosidade, absurdo e encantamento. Se o protagonista proustiano é mais ligado à mãe, o nosso herói parece ser mais ligado ao pai, que é um homem lido e ama os livros. Também como Marcel, Alberto se vê em plena indecisão amorosa ante uma pluralidade de “amigas” em flor. A Alberto, como diz o narrador em terceira pessoa, “Faltava ser adulto. Tudo que dizia era ignorado ou posto em dúvida. Silenciava. A verdade não precisava das palavras faladas”. Nesta última frase, há todo um Proust compactado. Entre o tédio e o desejo, Alberto descobre o mundo: é sua aurora.
Não obstante a imprecisão temporal e a precisão psicológica, fiadora de uma névoa inerente às novas sensações a que obriga o amadurecimento pessoal do herói, o autor também nos retrata um espaço e um tempo histórico bem precisos: as cidades do Recife e de Olinda e o período sombrio (de “chumbo”) da ditadura militar, com seus “desaparecimentos”, sua tortura e suas mortes (o caso do Padre Henrique, assessor de Dom Helder Camara), com as famílias (inclusive a do próprio Alberto) assombradas pelo medo e pela perda de pessoas queridas.
Em suma, a novela do autor pernambucano é um fascinante fio de refinamentos, tanto psicológicos e histórico-sociais quanto literários. Por isso, fechamos com inevitável louvor esta resenha, a qual, pontue-se, não buscou mais que fidelidade. “Alberto queria e merecia elogios [pelo que escrevia ainda jovem], os verdadeiros elogios”. Ficam aqui, portanto, além das breves considerações acima, os mais “verdadeiros elogios” ao escritor Marcos Creder e a seu inesquecível Alberto. “Aurora escura, cor de chumbo” mostra mais uma vez porque a literatura, e apenas a literatura, sabe, a um só tempo, abranger as várias dimensões da existência. No mais, a contida melancolia da novela é um triunfo de um mestre da palavra.
São Paulo, 05 de dezembro de 2024
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