
Fausto
O Fausto, de Goethe (1749-1832), é um drama épico. E moderno. Sem deixar de ser clássico. Trata-se de obra que é um marco do pensamento moderno. Cuida de um pacto do seu principal personagem, Fausto, com o demônio, Mefistófeles. Ele troca conhecimento por servidão. E empenha amor por rendição. Por tal via torta, pretende tocar o eterno. E apreender, acima do trivial cotidiano, o mistério das coisas superiores. Dispôs-se a perder o senso de proporção e a desligar o critério da lógica. Para apropriar-se do máximo poder.
Cada época tem seu Fausto. Ele terá sido um oficial corso que tomou para si quase a Europa inteira. Ele terá sido também um pintor austríaco, frustrado, que patrocinou o surgimento de Partido ultradireitista. Que eliminou milhões de judeus em campos de extermínio. Ele terá sido, possivelmente, um líder comunista que escreveu uma cartilha. E pensou ter feito uma Revolução Cultural. Não o fez. E seus principais auxiliares, o bando dos quatro, terminaram na cadeia. Pode-se dizer que há um Fausto americano?
Talvez. Empresário, construiu uma torre de cinquenta andares em Nova York. E, achando pouco, tornou-se político. De rara ousadia. E montou uma montanha mágica em Washington. Dispensou as lições dos Founding Fathers, sobre República e Federação, sobre democracia e direitos civis. E abriu espaço de poder às big techs. Plantando no tapete da Casa Branca a semente de uma plutocracia. A modernidade não é fácil. Tudo que é sólido desmancha no ar. É construído para ser destruído. Um filósofo da administração falou em destruição criativa. E o mundo, que se preparou para estruturar-se em grandes sistemas presenciais, virou digital. Homework.
Por isso, não é despropositado afirmar que tal moderno é cheio de ambiguidades e paradoxos. Com o risco de, repentinamente, não enxergar valores. Não divisar princípios. E, assim, indiferente à desigualdade, à injustiça, à educação, assumir a volúpia do ódio. Ignorar a empatia. Desprezar a solidariedade. A dialética dessa modernidade some no não ser. Ocupada apenas no ter. Não se detém no dilema hamletiano do ser ou não ser. Não existe o espírito de congregar. O projeto de agregar. Não há a liga que reuniu a Convenção da Filadélfia. O que há é subtração. Isolamento. Abandonar o Acordo de Paris. Deixar a Organização Mundial de Saúde – OMS. Uma era fáustica?
Uma sensação fáustica. Apocalíptica. Onde a beleza do fazer incomoda. E a feiura do desfazer seduz. Entre a ética e o amoral opta-se pelo mais vantajoso. Pois esta é a regra. Proveito máximo. Fáustico. Usando o espelho de Narciso. Para alimentar gula de ególatra. Que só enxerga a si. E aos seus. Entre a invenção de espírito e o fio da espada fica com a força. Distraído. Porque no longo prazo vencem as ideias. A filosofia helênica. O código da lei civil romana. O inspirar. O sentir. A arte. A cultura. A amorosidade eurotropical. Florença e o Recife. Tão distantes. E tão próximas nas origens seminais.
Há, ao mesmo tempo, uma questão de gosto. E não se diga que gosto não se discute. Discute-se, sim. Porque há bom gosto. E há mau gosto. Exemplo: substituir no ambiente americano Cole Porter, Ella Fitzgerald e Jackson Pollock por Elon Musk é escolha clara. Há ou não há um Fausto americano?
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