Stalin

Stalin

Provavelmente sem o saber, o então cardeal Bergoglio repetiu Joaquim Nabuco, quando, em “Minha formação”, o grande pernambucano distinguia duas políticas. Não são raras, como se sabe, essas convergências no mundo das reflexões. O futuro papa comentou: “Seria necessário distinguir entre a Política com P maiúsculo e a política com P minúsculo. Qualquer coisa que um ministro religioso faça é um fato político com P maiúsculo, mas alguns se metem na política com P minúsculo. O religioso tem a obrigação de apontar os valores, as linhas de conduta, da educação ou dizer alguma palavra, quando lhe pedem, diante de uma situação social determinada […]  Não é ruim quando a religião dialoga com o poder político […]”. (Cf: “Sobre o Céu e a Terra”, de Jorge Bergoglio e Abraham Skorka).

Quer se queira, quer não, é óbvio que o papa é um líder político, sem deixar de ser primordialmente um líder religioso. Sendo, como de fato é, uma instituição multinacional, a Igreja Católica antes ganha do que perde num mundo  hiperconectado. Pode-se dizer que ela tem, até por trazer no nome, “católica” (do grego, “universal”), a universalidade que está pretensamente inserida na globalização política, econômica e informacional. Foi ciente dessa força política maiúscula que Nabuco, acima citado, tomou a iniciativa de pedir a intercessão do Papa Leão XIII em favor da abolição da escravatura no Brasil, no que, aliás, foi atendido.

Por mais que hoje possa causar estranheza, o papado já teve um exército atuante  na Idade Média e no Renascimento. Consta que, só na década de 1970, essas forças militares, já empalidecidas pelos ventos da História, foram extintas por Paulo VI. No mesmo século, uma frase do ditador Stalin passaria a reverberar com atroz ironia: “Quantas divisões tem o papa?”. A hoje célebre frase teria sido dita ao ministro francês Pierre Laval, em 1935, quando este ponderou um tanto ingenuamente que o líder comunista, com certo gesto político, atrairia a boa vontade de Pio XII, que não via com bons olhos a perseguição de católicos na União Soviética.

Evidentemente, a frase do cruel ditador comunista era condizente com sua “realpolitik”. Mas não é o tipo de frase que se evapore no ar do esquecimento. Em sua crueza, diz uma verdade e esconde outra. À primeira vista, é frase cristalina: “Que poder militar tem o papa?” ou “Pouco me importa o papa se não tem forças militares para se medir com a União Soviética”. O desdém agrava a desigualdade dos atores: o papado e a então poderosa potência comunista.

O que a frase de Stalin esconde é que ela só é válida num contexto de força física, de poder material e bélico (Pascal diria que há aí uma confusão de ordens e que “A força nada faz no reino dos sábios”). Não é num contexto de violência que podem brotar uma sociedade saudável e valores que lhe deem sustentação. Não obstante isso, a frase stalinista, em negativo, realça o valor moral da figura do papa. 

Naturalmente, esse valor moral do papa é tanto mais forte quanto mais se crê em sua suposta imparcialidade. No fundo, porém, não se pode descartar o poder de influência religioso, ainda quando ele pareça não estar presente; enfim, como escreveu Terry Eagleton, em seu livro “A morte de Deus na cultura”, “As sociedades não se tornam seculares quando descartam totalmente a religião, mas quando já não são particularmente mobilizadas por ela”, o que, convenhamos, está longe de ser o caso. Sem divisões, sem forças militares, ao fazerem política com P maiúsculo, os papas perfilam ao lado dos diplomatas e se envolvem, muitas vezes sem alarde midiático, em negociações que prosperam para o bem geral dos povos e das nações, construindo, como desejava o Papa Francisco, “pontes e não muros”.

“Quantas divisões tem o papa?” é uma pergunta que sobrevive não só porque causa um irônico impacto, mas porque muitos só veem, ou melhor, só aceitam seu sentido mais aparente. Mas é pergunta que, pedagogicamente, nos coloca de um dos lados: da Guerra ou da Paz, do Direito ou da Força, da Violência ou da Empatia. Por seu peso simbólico-existencial, devemos sempre tê-la em mente, sem moralismo e sem rancor.