“O lar é um sentimento, mais nada. O lar é ilusório, como o amor, que depois desaparece. Depois que você parte, vira um estranho. Perdi meu lar, e isso é para sempre. Eu não voltaria para a Polônia. Esse fato dilacera meu coração. Eles não me querem lá. Todas as minhas recordações são sombras, sombras desprezíveis. Aquele país está esquecido. Lar é onde ergo minha cabeça”. In “Não Existem Heróis”, Memórias de Volta ao Lar, de Chris Offutt
I
Chego à estação rodoviária de Cracóvia com os primeiros clarões da aurora. O lenço de algodão está empapado do tanto que espirrei no ônibus, mas o alívio de pisar chão firme me faz relevar o mareio do corpo resfriado. Verdade seja dita, sofri muito com o frio durante a noite, no longo trajeto que me trouxe da Lituânia até aqui. Agora, enquanto aprecio o despertar da cidade, torço para que o calor se alastre pelas ruas e dê ao sul da Polônia um alento nítido de primavera.
Sempre me pergunto se saberei um dia cuidar de mim a contento. Isso porque, mais uma vez, e por puro desleixo, trouxe apenas um pulôver puído; defesa frágil diante das lufadas que sopram em abril. Ademais, é pouca roupa para quem vai passar o dia ao relento, exposto à calefação avara de outros tantos ônibus precários, e ao açoite do frio que vem da Rússia, comum na região. Mas o estímulo da viagem será um antídoto contra qualquer mal oportunista.
Frente ao guichê onde compro a passagem para Stopnica, sou abordado por um homenzarrão de hálito azedo, próprio dos bebedores de vodca. O sujeito é imenso, não faz a barba há bons três dias, mas percebo-lhe os olhos de cor cinza, como só julgava possível em linces, e um fio de baba cristalizada pelo frio a branquear-lhe os cantos da boca. Sinto-o inconformado com a curta abstinência, pois pede uns zylots para segurar o porre, se é que entendi bem os grunhidos que resmungou.
A moça que me vende o bilhete, impresso num papelzinho amarelado, informa que o próximo ônibus só sairá às 7:30. Decido zanzar pelas redondezas, comer uma salsicha em pão dormido e soletrar as placas que indicam destinos impronunciáveis em todas as direções. Logo percebo que a presença dos bêbados não é tão casual quanto me pareceu e esbarro em muitos deles, optando por afetar incompreensão embora, por princípio, não seja de ficar indiferente à sede de semelhantes. Mas deve haver algo de errado na forma como os trato. É possível que esteja ligada ao não-verbal, ou à minha gesticulação que risca o ar, pois todos me dirigem apupos. Menos mal que não os entendo. Conforta-me ver que os poloneses também fazem o mesmo, apesar de lhes darem ouvidos mais atenciosos, enquanto apontam os bolsos das calças e esticam os lábios. Seria essa forma, em tudo mais humana e compreensiva de tratar os marginalizados, um resquício da herança socialista?
II
Por fim, partimos. Agora que deixamos Cracóvia, começo a editar a paisagem com as reminiscências de um amigo nascido há mais de oitenta anos nessas paragens. A cada curva, ecoa em meus ouvidos sua voz monocórdia e seu bem-articulado português, eivado de inconfundível sotaque da Europa Central. Na verdade, se me disponho a ir até Stopnica, o faço também para homenageá-lo, pois foi lá que ele nasceu. E como é prodigiosa sua memória, sei que o ajudarei a refrescá-la. Uma hora depois da saída, entramos no que me parece ser uma enorme planície. Aqui e acolá há uma elevação discreta, mas nenhuma ondulação topográfica que impeça um ciclista de meia-idade de subi-la montado, sem precisar fazer esforços extras. Ao longe, montes de feno enfardado assomam na paisagem onde os cavalos pastam e ostentam grande força e beleza. Quando paramos no trajeto, percebo um sobe-e-desce frenético de camponeses robustos e bem-agasalhados que é digno de nota.
Isso porque, uma vez embarcados, eles permanecem silenciosos e taciturnos, entrelaçando os dedos calosos, ou tamborilando-os nos joelhos, como se uma viagem de ônibus fosse, antes de tudo, uma experiência forçada de convívio humano a que não estão de todo acostumados. Vez por outra, um trator preguiçoso refreia nosso ritmo. Vejo-me cercado de uma beleza tal que me vem a “Pastoral” de Beethoven ao coração. E, indiferente ao desconforto, consigo cochilar ao som do motor.
O motorista é um loquaz sem platéia, pobre homem. Por mais de uma vez percebo que ele ensaia conversar com um ou outro passageiro à sua volta, embora ninguém pareça receptivo. Quando eles muito fazem para retribuir as provocações, acenam com a cabeça, e um muxoxo qualquer, que ele acompanha pelo largo retrovisor, antes da próxima tentativa. Até eu sou acionado, mas desfaleço contra o vidro frio, na tentativa de salvar migalhas de sono.
Do espelho largo cai uma flâmula com a foto do Papa e a cada quilômetro rodado passamos por pequenos oratórios instalados no acostamento da estradinha, todos bem cuidados e ornados de flores, testemunhando a devoção dos poloneses a santos e mortos. Como não pensar em Fiszel em meio a tanto fervor católico? Afinal, meu amigo é judeu. E foi como judeu que viveu sua infância no pré-guerra. Essa é outra razão para eu ir até Stopnica. E não a menor delas, é bom que se diga.
III
Pois, na verdade, sempre tive certo fascínio por essa parte do mundo e o que ela representou para os judeus. Os livros de Isaac Singer contribuíram muito cedo para aguçar minha curiosidade de visitar um vilarejo que, até um século atrás, vivia a rotina descrita nos seus muitos romances. Foi nessa parte do mundo que se plasmou um dos mais buliçosos núcleos da vida judaica de então, como sabem todos que o leram; e que acompanharam os terríveis desdobramentos dos anos 30 e 40.
Assim, toda cidadezinha tinha casamenteiros, rabinos operosos à testa de pequenas congregações, abatedores de galinhas, mulheres dadas à fofoca, relojoeiros comunistas, umas tantas almas penadas que viviam à beira da mendicância, tipos simplórios que protagonizavam grande sabedoria de vida e outros tantos que, embora sábios versados no Talmud, terminavam por se perder nos desvãos da vida prática, levando famílias à ruína e filhos a mais bem acabada infelicidade.
Quantas vezes, agora eu lembrava, não passei dias entretido com as intrigas ambientadas por ali? Faz tempo que desisti de entender o que me fascinava naquelas aquarelas que mesclavam judeus abastados à beira da assimilação com jovens intrépidos, de rosto escanhoado, que sonhavam com a Palestina como passe para uma vida entre iguais. Quem melhor do que Singer para introduzir Spinoza nas discussões entre socialistas empedernidos e homens de fé cheios de pureza?
“O sertão é o mundo”. O que me faz pensar em Guimarães Rosa em meio a este cenário ainda pulsante de vida? Tudo e nada, eu imagino. Pois é evidente que não espero poder rastrear os vestígios desse rico ramerrão na Polônia contemporânea. Poucos anos depois da chegada de Fiszel ao Brasil, esse afresco Segalliano começou a adentrar o túnel do passado a passo acelerado, e Hitler se encarregaria de reduzir a pó as pegadas de vida judaica que teimassem em sobreviver.
IV
Contudo, se minha curta estada puder trazer à tona um vestígio perdido desse passado, me darei por verdadeiro felizardo. E não fosse a barreira natural do idioma, poderia até aventurar-me a pedir a um senhor amistoso que me levasse a um cemitério, a uma casa de banhos ou às ruínas de uma velha sinagoga. Algo me diz, porém, que esse esforço seria vão. Correria o risco, ademais, de querer aprofundar-me na experiência, o que me ligaria à cidade mais do que desejo.
Mas sei que, volta e meia, meu coração pulsará acelerado. Nem que seja pela proximidade imaginária que estabelecerei com Fiszel durante as horas em que estiver em Stopnica. Os viajantes têm uma forma toda própria de ver as coisas e de fazer valer suas excursões. E, não sei bem porque, espero que meu testemunho acabrunhado de uma cena urbana, por ínfima que seja, possa fazer com que ele reate com esse passado longínquo, e aproximá-lo dele pela objetiva de meu olhar.
Pois com tudo que possa ter sido destruído, lá permanecem os contornos gerais das paisagens dos anos 30. Certamente que a topografia mudou pouco, a luminosidade solar também e desconfio que Fiszel já viveu, na infância, uma primavera florida igual a essa. Passeou ao lado do mesmo rio e sob a copa das mesmas árvores. Nenhuma viagem é perdida, disso sabemos todos. Como poderia ser de outra forma? É o que me pergunto quando vejo o voejar caótico de uma nuvem de pardais.
V
Assim, chego à parada de ônibus de Stopnica antes das dez da manhã. Contrariamente às estações anteriores, aqui a entrada é mais solene. Pois saímos da estrada principal e embicamos à esquerda, onde ainda nos aguardava um retorno em forma de cotovelo que faz bufar o agora silencioso motorista. Mais de duas horas tinham transcorrido desde que deixáramos Cracóvia e, finalmente, tinha eu a chance de explorar cada escaninho desse turbilhão que me revolvia o espírito curioso.
Fiszel já me prevenira que sua cidade pouco mais se tornara do que um posto de gasolina. Ora, se fosse tão pouco, a atendente do guichê não teria identificado minha parada tão rapidamente, apesar do sotaque enviesado que emprestei a meu polonês nulo. Há, efetivamente, um posto de serviço bem grande, à direita de quem chega, mas a cidade em si se estende rumo à esquerda, escalando uma pequena colina onde sobressai uma igreja. Quem lhe dera informação tão simplória?
Reduzir o conjunto a um posto, agora eu entendo, pode ser apenas uma forma de minimizar o passado, de tirar-lhe importância. E de desencorajar viajantes aventureiros, como eu, a abrir-lhe a chaga de uma infância marcada pela dor. Com isso, fica ele próprio eximido de acorrer ao chamamento interno de lá voltar um dia e de reatar com a hostilidade do meio. Assim, se tudo agora se resumia a tão pouco, por que visitá-lo? É só uma hipótese, é verdade, mas me parece verossímil.
VI
Viajar, no fundo, pode resumir-se a dar vazão a hipóteses. E, desconfio, pode ser que eu esteja equivocado. No fundo, ele fala até hoje com carinho de sua infância. É preciso ter cautela com certas interpretações. Vivendo há muito tempo longe de minha terra natal, mal escondo das pessoas o quanto invejo conhecer quem ficou, vida adulta fora, no lugar onde nasceu. Por menos que me veja preso ao meu, onde, a exemplo de Fiszel, temo que a vida, por outras razões, não teria sido possível.
Em Stopnica, Fiszel teria sido aprendiz de rabino – do “cheder” para a “yeshivah”. Mas como alimentar um horizonte maior tendo sido a História daquela região o que foi? Será que, tantos anos passados, ele já parou para pensar que Auschwitz dista pouco mais de cem quilômetros de sua cidade? É possível que não, já que este lugar aterrador não existia como tal na época. Era só mais uma cidade polonesa, o nome sequer era germanizado. De novo as hipóteses; o monólogo sem fim dos viajantes.
Ao chegar à cidade, detenho-me na parada de ônibus e, perfilado com os passageiros que esperavam o próximo, respiro fundo aqueles ares campestres, identificando um cheiro de lenha verde agreste e acolhedor, irmão do que senti quase trinta anos atrás, quando cheguei a Rothenburg, bem a oeste de onde agora me encontro. Começo a disparar a câmara e imagino como Fiszel se sentiria se estivesse no meu lugar. Para onde acorreria em busca de suas reminiscências?
VII
Caminho, então, na direção do centro da cidade. É lá que estão alinhadas, com alguma desordem, as casas mais antigas. E se a pátria de todo homem é sua infância, seria ali que ele encontraria os vestígios vívidos da sua. Um corvo crocita num canteiro de flores e alça voo rumo à planície. Que culpa tem a natureza se os poloneses odiavam os judeus? O que têm as árvores a ver com as vociferações de morte e as bebedeiras incontidas, onde a selvageria rural era a norma?
Enquanto abro caminho por um pequeno atalho que me leva ao casario mais austero, lembro-me que Fiszel certa vez me disse que até cogitara de visitar Stopnica com Rosa. Mas que bastara ver um documentário sobre a região para desistir. Nele um cineasta francês entrevistou habilmente os camponeses do Leste da Europa; e estes não pouparam apupos aos judeus que conheceram, aos que não conheceram ou àqueles de quem apenas tinham ouvido reminiscências caóticas e desencontradas. Pena.
Gente rústica, dessas que acorriam à missa com os sapatos dependurados pelos cadarços em volta do pescoço para evitar a pressão nos artelhos, os poloneses de Stopnica, tanto os de ontem quanto de hoje, certamente que não são dos mais tolerantes para com a diversidade. Pois não tardo a ver suásticas desenhadas em muros residenciais. Fotografo-as, mas não as mostrarei à família. Sei que isso não surpreenderia meu amigo. Mas entendo que dariam a Rosa, sua esposa, a senha para a tristeza anunciada.
VIII
O fato é que as pessoas conhecem seus limites. E testam-nos quando se dispõem ao jogo de ganhos e perdas inerentes a opções como esta. As garatujas rabiscadas em spray e as tenebrosas “aranhas” do Reich que vejo nessa parte do mundo, provocam sensações que não estou em condições de aquilatar, devo reconhecer. Mesmo assim, lamento que Fiszel não tenha voltado aqui. Ainda que isso lhe tivesse custado a visitação de fantasmas por alguns dias. Com meu esforço, tento redimi-lo da missão abortada.
Coroando a primeira etapa da excursão, chego à praça principal. No centro, um pequeno monumento assinala uma data cuja importância não posso interpretar. As lojas de comércio são não mais do que quatro, sendo que três delas estão perfiladas do lado oposto à agência de correios, e uma, solitária, na mesma calçada. O dia ensolarado convida os comerciantes a expor suas mercadorias ao ar livre. Dois ou três pequenos grupos estão formados por ali e me observam em silêncio.
A vendedora de frutas e legumes apresenta meia-dúzia de caixas de madeira onde pontificam maçãs muito bonitas, umas poucas pêras acanhadas, batatas recobertas de terra e cabeças de alho raquíticas. A matrona polaca sorri com timidez diante da minha curiosidade em apalpar frutas e legumes tão triviais. De que planeta vem esse homem, com ares de um turista apalermado, e de máquina em punho, a fotografar coisas tão banais quanto seus caixotes?
Já a padaria me remete a Fiszel de forma mais imediata. Conto uns dez pães de camponês, o que ele chama até hoje de “bauerbrot”, em iídiche, e uns tantos frios que me pareceram apetitosos. Peço à moça que me fatie um salame e compro um pão inteiro, cujos três quartos deixaria na lata de lixo da igreja, minutos mais tarde. O restante das lojas vende miudezas ou utensílios de jardinagem, o que não me dá alternativas de comprar-lhe um presente de recordação.
Mesmo assim, ainda hesito em adquirir uma pequena pá para com ela escavar um terreno baldio e trazer-lhe um pouco da terra de sua cidade num saco plástico. Mas temo que meu presente não seja bem-vindo. Pois são ambíguas as sensações que os rincões de origem provocam em quem não foi propriamente feliz neles. Contudo, deveria ter corrido o risco. O pior que poderia acontecer seria que ele despejasse o conteúdo na caçamba de lixo que dorme na praça, frente à sua casa paulistana, na rua Benedito Chaves.
Não que eu jamais tenha identificado traços de amargura permanente com respeito ao destino que o fez ver o mundo em Stopnica, repito, enclave que poderia ter sido a ante-sala de uns tantos horrores que o teriam ceifado a vida ainda na adolescência. A quadra adulta, porém, lhe reservou momentos tão memoráveis que a infância pobre e difícil há de ter-se cristalizado no que trouxe de bom: a união da família, a culinária frugal, porém robusta; a vontade sem fim de aprender e de estudar.
IX
Mas lembro também de tê-lo ouvido por mais de uma vez referir-se aos cachorros desabusados que os camponeses arremetiam contra ele e os irmãos; aos xingamentos que ouvia e à atitude hostil daquela gente, ciosa de sua homogeneidade, diante de um punhado de judeus que se vestiam, comiam e falavam diferente deles. Há espaço para o intelectual indulgente diante da cara feia do destino quando se é criança? Está ao alcance do adulto relevar o mal à luz da história?
No caminho para a saída leste da cidade, uma senhora de lenço enrolado na cabeça e muito encurvada pergunta-me alguma coisa em polonês, gesticulando muito e arqueando a ponta da bengala no ar. Não faço idéia do que seja e respondo-lhe em russo que não sei falar polonês. Talvez a emenda tenha saído pior do que o soneto. Ela me dispensou com uma bengalada nas pernas, como se estivesse enxotando um cão sarnento que tivesse vindo farejar-lhe os calcanhares entrevados, e prosseguiu seu monólogo ininteligível.
Sem dúvida que estou sugestionado e vejo sinais de exagerada estupidez na conduta de todos, até mesmo numa velhinha meio gagá que busca o sol para aliviar a artrose, e que talvez só estivesse à procura de um dedo de prosa. O sol parece que trouxe os velhos para as calçadas e conto muitos deles que são, com certeza, contemporâneos de Fiszel. O que será que diriam se soubessem que aquele menino teve que rodar por três continentes até encontrar a mesma paz de que eles desfrutaram sem nunca ter saído de Stopnica?
X
O sol agora bate forte e até o pulôver de lã gasta parece-me pesado. Penduro-o em torno do pescoço para proteger a garganta e sento num banco da praça, próximo a um quiosque. Um carro pequeno pára com estrépito e três jovens fortes saltam para comer almôndegas e tomar cerveja. A música que vem do rádio é a nefanda eletrônica. Estou velho mesmo. Não sei porque, logo estabeleço um nexo causal entre aquele tipo de ritmo e as suásticas garatujadas na entrada da cidade.
Faço o caminho de volta com uma agradável sensação de dever cumprido. De vez em quando, surpreendo-me apalpando o fundo dos bolsos como que para certificar-me de que os filmes estão lá. Como sempre faço nessas ocasiões, dou uma olhada final em direção à cidadezinha que logo desaparecerá na próxima curva. É nessas horas que sei se voltarei ali ou não. E, embora não saiba o que me fará refazer esse caminho, tenho certeza de que Stopnica ainda cruzará meu destino nesses próximos anos.
Nem que seja para assinalar um reencontro comigo mesmo e com um dia de fulgurante primavera em que tirei da experiência alheia uma alegria transbordante. Dessas que só a companhia diligente dos amigos queridos podem dar.
Epilogo
Já no Brasil, separei as fotos em preto-e-branco e entreguei-as a Fiszel sem fazer comentários. Ele espalhou-as pela mesa e, a princípio, tive a impressão de que chegou a duvidar que eu tivesse acorrido à cidade certa. A igreja pareceu-lhe pequena, mas logo o vi reconstituir as linhas gerais do lugarejo, desenhando no ar pontos cardeais imaginários, como é de seu feitio. Por via das dúvidas, eu trazia na carteira a passagem de ônibus, já que me acostumei a lidar com seu ceticismo e gosto marcado pela exatidão. Acho até que gostou do que viu. Mas, no fundo, jamais saberei com precisão. Não é sempre que os guias interpretam com clareza o que vai pela cabeça de seus excursionistas.
Meu sogro, saudoso amigo e mentor – Fiszel Czeresnia – faleceu hoje, 26 de fevereiro, aos 93 anos.
Fernando Dourado Filho
Paris
fernando, gostei mto do texto, vc esta em paris?
Oi Monica, Estava sim, mas agora estou em Trier, Alemanaha. Quarta pela manhã já estarei de volta a SP. Fico contente que tenhas gostado. Fernando
Fernando, querido.
Não poderia existir mais bela homenagem ao meu pai. Que bom que ele teve acesso a este texto ainda em vida.
Tua ida a Stopnica marcou nossa família. Você teve acesso ao início da história de meu pai e que bom que pôde acompanhá-la por tantos anos, mesmo com as interrupções decorrentes do caminhar de nossas vidas.
Ele ficou muito grato a você por isto. E por tua amizade durante estes anos todos.Você é um dos poucos que o conheceu profundamente, em toda sua essência. Ele está fazendo muita falta. Beijo grande e obrigada!
Primo,
Bela narrativa,homenagem à amizade magistral.
Abraço
Fascinante! Eita texto bem escrito! Conteúdo emocionante
que me levou a uma vontade de contar outros histórias dos meus, de lá, que aqui chegaram.Todos os que ficaram, fertilizaram os campos referidos por Fernando com suas cinzas espalhadas por nefandas chaminés.Que o solo brasileiro seja brando e acolhedor para Fiszel. Que a pena digital de Fernando não pare de dizer coisas como as que ele tem dito nesta Será?
Quanto a mim, enxugo umas impertinentes lágimas e tentarei, apenas, a continuar fazendo graças amargas,pensando.
David,
Obrigado pelo carinho. Uma história me ocorreu ao ler sobre o “solo brasileiro” a que você aludiu. Lá pelos idos dos setenta, Fiszel nos levou para passear de carro numa noite de domingo. No vidro traseiro, um adesivo: “Sou brasileiro, judeu e sionista”. Época em que o Brasil votara estupidamente uma moção que dizia que o “o sionismo era uma forma de racismo”, ele lamentou. Lamentou, mas se menteve altivo e o Brasil não caiu no conceito. Mas onde a “yddishkeit” dele mais reluzia era no humor. Uma vez eu encontrei numa festa a pasicanalista Ana Verônica Mautner e, meio irônica, ela se referiu a ele como um “judeu profissional”. Resolví lhe contar a passgaem. Ele ouviu o relato com um sorriso maroto e rebateu: “Ela tem razão”.A simplicidade fazia dele um gigante.
As filhas do Fiszel, conheci seu Pai desde sempre. Foi amigo de meus pais, social e comunitariamente. Frequentou nossa casa no Itaim, quando eu era pequena. Tenho fotos dessa epoca. Vi-o pela ultima em uma manifestacao por ocasiao da Guerra do Golfo, na Hebraica. Seu Pai foi muito ativo na formacao da consciencia comunitaria de nosso ishuv. Que ele descanse em paz. Sinceramente, Vera Mindlin Bobrow
Vera, querida.
Obrigada. Meu pai sempre teve muito carinho por você e pelo Jayme. Vocês também têm atuações tiveram atuação marcante na comunidade judaica do Brasil.
Vera,
Corroborando seu depoimento, me vem à lembrança as vezes sem conta em que o vi atender humildemente à covocação dos netos para dar palestras em escolas como o Bialik ou o Santa Cruz, por exemplo. Já bem entrado nos oitenta, ele preparava um pequeno material e ia falar aos adolescentes sobre a experiência da formação de Israel. A modéstia certamente não lhe permitia dizer com todas as letras. Mas aquela rapaziada estava diante de alguém que cruzara caminhos com Ben Gurion (admirava muitíssimo); Beguin (não tinha afeto nem simpatia, mas entendia); Eshkol, Bar Lev, Peres, Shamir, Sharon, Dayan, Golda, Nahum Goldman, Weizman, Rabin e tantos outros. Na fase final, a preocupação maior era com o Irã – perigo que achava que eu subestimava. Sobre tudo que perpasssou a vida comunitária paulistana, tinha um depoimento bem fundamentado a dar: o consulado; a figura central de Leon Feffer e seu pragmatismo; o hospital Albert Einstein; a Hebraica; o famoso atentado à estação da Luz e até – pouca gente sabe disso – o plano B que urdira com Horácio Lafer, chanceler de JK, caso o avião que levava Eichman da Argentina para Jerusalém tivesse que escalar no Nordeste, onde seria vital evitar a inspeção de praxe da Polícia Federal – o que colocaria em risco a missão. Tanto melhor que o voo da El Al embicou direto para o Atlântico e chegou à África para reabstecimento. Mas o plano B fora feito. No outro “front”, e sem ser petista, deu ombro e carinho a José Genoíno quando este virara um proscrito social. Não havia ´seder` de Pessach em que ele e Ryoko não estivessem em torno da mesa alegre. Por fim, Vera, nunca cheguei à casa dele sem ouvir um: “Separei uma coisa para te mostrar”, e lá vinha com um recorte de revista ou jornal. Nesse terreno, o melhor livro era o último e o mesmo valia para os filmes. De defeito – e grave -, só mesmo o de de ser continthiano. Mas a vibração era tamanha que, nas ocasiões que víamos os jogos juntos,eu torcia pelo empate.
Texto sensivel, com uma riqueza de detalhes que me senti na Polonia, sem contar as pitadas de bom humor. Linda homenagem!
Deslocado para um outro interior, rústico e preconceituoso como tantos outros que compõem nosso país. Ao mesmo tempo demonstra uma reverência ao leitor, seu recém-falecido sogro, interrompendo a narrativa quando a mesma viesse a tornar-se potencialmente desconfortável ou despertasse algum incômodo dum passado ou de um futuro não vivido nas paragens de Stopnica.
Fernando querido, obrigada pelo lindo texto. É comovente sentir meu pai tão vivo dentro de você. Um forte abraço.
Mandou muito bem, xará! Tive uma experiência semelhante em 2012, quando fui visitar a cidade do meu avô paterno – Simon Lottenberg. A cidade se chama Plonsk, um pouco ao noroeste de Varsóvia. Sem muitas referências, meu avô saiu de lá na década de 1910, tentei sentir alguma coisa do que ele tivesse passado e vivido por lá. Ninguém da minha família tinha feito esse percurso até então, por razões bastante compreensíveis. A verdade é que foi uma torrente de mixed feelings, comprovando histórias muito tristes, mas ao mesmo tempo aprendendo lições de coragem, solidariedade e heroísmo.
Tive uma convivência próximo ao Fiszel nos anos 80. Aprendi muito com seu conhecimento, suas experiências e um quase incorrigível otimismo com a possibilidade de um dia Israel viver em paz com seus vizinhos. Vai fazer falta.
Fico feliz, Fernando Lottenberg, que uma experiência tenha sido complementar à outra – no caso a tua em Plonsk com a minha em Stopnica. Como verás logo mais abaixo, o meu bom amigo Floreal Rodriguez também viveu algo similar no sul da Espanha. Isso daria pano de fundo para um alentado painel que congregasse a troca de experiências entre “exploradores de fundo de baú” em busca de reminiscências. Sempre tenho enorme prazer em ter notícias suas e dê uma olhada ocasional nas páginas dessa Será? que, tenho certeza, te trará boas novas da república pernambucana. Comece hoje mesmo pela leitura de “Comandante Abelardo” – de minha lavra – e pelos escritos deliciosos de seu colega de profissão, João Humberto Martorelli – velho companheiro de grupo teatral. Incursione por Teresa Sales e logo estarás cativado. Quanto a Fiszel, vou perder a batalha das saudades – elas sempre serão mais fortes do que eu. Grande abraço e até o próximo vinho, Fernando Dourado
o texto de fernando dourado é o que se pode definir como absolutamente visual. não apenas pela descrição exata dos cenários, ou o clima de sedução do leitor que consegue imprimir nas cenas, mas por conter palavras claras, límpidas, distante do hermetismo com que alguns tentam impregnar os escritos com o fito de abraçar erudição.
Nas pegadas de fiszel czeresnia, como leitor atento, também segui ao seu lado, passo a passo, estratégia própria dos escritores que se engraçam do foco narrativo na primeira pessoa.
observei com os olhos de Dourado as acontecências e os cantos que avistamos, eu e ele, desde a estação em que desembarcara, etc.
Prezado Paulinho,
Agora com mais tempo para responder os “posts” recebidos, passada a primeira semana de uma dor exposta e, afinal, em consideração especial a você que é um escritor profissional, gostaria de elencar cinco ou seis detalhes sobre esse texto que conheceu tanta repercussão, inclusive fora desse espaço: a) O impacto inusitado decorreu do calibre de seu Fiszel. Um homem dessa estatura só crescerá com os anos e os que privaram de seu convívio o dirão com grande orgulho; b) Em segundo lugar, o texto foi escrito nos dias seguintes à visita a Stopnica, num pequeno hotel de Varsóvia perto da Senatorska, Giborska, Mila e Krochalma – logo, no coração mesmo do velho bairro judeu. Tantos referenciais somados à emoção de pequena empreitada lhe deram legitimidade e impacto; c) Ele foi publicado pela Será? em primeira mão, sem nunca ter saído da “gaveta digital” desde o ano de 2004 – salvo para uma leitura do homenageado, onze anos passados; d) Acresci-lhe ao rodapé – como é óbvio – a data de falecimento de Fiszel e, achando-o grande demais, o fatiei em dez mini-capítulos onde os pontos de corte – função da paragrafação – me pareceram ser mais oportunos. Quero acreditar que esse artifício tenha dado fôlego extra ao leitor que chegou ao fim; e)Adorei as referências às palavras “claras, límpidas, distante de hermetismos”. Que alegria: pois a regra é justamente que eu seja acoimado de empolado e de empregar um vocabulário meio barroco. É um alívio saber que me liberei disso, pelo menos em parte. Só quem foi gago na infância sabe aquilatar a importância de um vocabulário amplo para tirar-nos de situações de tropeço fonético, logo de vexame; isso faz do ex-gago um mago da sinonímia em quaisquer circunstâncias e, é claro, eles não esquecem as palavras. Elas já foram a salvação da vergonha e o passaporte para a consagração; f) Por fim, é descaradamente intencional essa mania de laçar o leitor pelo pescoço e fazê-lo respirar os mesmos ares e ver as mesmas cores. Seu depoimento me fez, portanto, pensar bastante – pelo que sou grato e devedor de uma boa rodada de chope para burilarmos tudo isso.
Abraço,
Fernando Dourado
Fernando,
O relato com a precisão e riqueza de detalhes é uma justa homenagem. Em dezembro, durante almoço, falavas dele como a pressentir sua partida. Que sua memória seja sempre preservada.
Linda homenagem! E o texto, belíssimo (como sempre… um deleite). Sou fã dos seus escritos, Fernando Dourado!
Maravilha… o texto e a homenagem prestada. Seus escritos me fazem viajar, com elegância e humor, pelos locais mais inusitados e distantes. Uma beleza.
“Tendo a honra de desfrutar da amizade de Fernando Dourado, ainda que já conhecesse o seu talento narrativo, deleite-me com a leitura do texto, poético, verdadeira lição para um viajante que já superou a ânsia do turista novato, e se abre às pequenas e múltiplas descobertas reservadas às mentes e corações abertos. Assim era o próprio Sr. Fiszel Czeresnia, marcante pelo trato carinhoso, e sua inafastável crença nas boas qualidades do próximo.”
Fernando,mais uma vez vc se supera nas narrativas ,elegantes, q faz.
Senti-me na Polonia – mesmo sem nunca ter estado la!
Penso q fez este texto num momento de grande inspiraçao ; descortinando para os seus leitores mais fieis – as liçoes de um viajante de coraçao sensivel.
Sem duvidas esta guerra deixou marcas …q se transformaram em ensinamentos de otimismo vividos pelo proprio sr Fieszel Czerinia( pai de Tamara).
cordial abraço,
Duca
Fernando e Tamara,
a amizade tem esse dom da generosidade de compartilhar nossos mundos e dessa forma convivermos com quem nunca estivemos mas , já tardio pelos acontecimentos, não nos é mais possível encontrar. Felizmente, alguns através das palavras bem ditas nos colocam quase lá. Lá onde o amor de um pai traz sua história.
Beijo
Lázaro
Meu amigo FD, com a sua sensibilidade e capacidade de expressá-la, vc nos deixou com uma imensa saudade do Sr Fiszel. infelizmente não o conheci. Meus sentimentos à Tamara.
Querido Fernando, ainda me surpreende a sua incrível capacidade de recriar atmosferas. Vivi experiência semelhante na década de 1980 ao passar uns dias no sul da Espanha para conhecer, finalmente, a terra do meu pai, que, a exemplo de teu sogro, para lá não regressou uma vez sequer. O que li não é da minha cultura nem da minha história, mas mexeu comigo. Grato por ir ao fundo dos baús.
Abraço saudoso do
Floreal
Não conheci Sr.Fiszel, mas pela grandiosaidade, delicadeza e sabedoria de seus ensinamentos deve ter sido um grande homem! Amigo Fernando, que grande homenagem prestas a ele e a nós que te lemos. Uma forma poética de nos aproximarms de um homem de grande caráter!
Grande texto,Fernando. Gostaria muito de ter conhecido o Sr. Fiszel.
Um belo réquiem, pessoal e emotivo na medida certa. A palavra escrita sempre foi e será a forma mais elevada de preservação da memória e da cultura diante da finitude de todos nós.
Que bonito!
Amigo Dourado,
Como sempre você se supera a cada artigo.
Muito me emocionou seu texto e vários dos cometários dos leitores/amigos.
Neto de judeus da Rússia ( por parte de minha mãe Diva Basbaum ) e da Ucrânia e Moldávia ( antiga Bessarábia ), por parte de meu saudoso pai Leão Masur, pude, através de sua sensível ( e muitas vezes comovente ) narrativa, “ver” meu avô Simão Masur e minha avó Guitel, vivenciando na longínqua Vertuzen, terra natal de vovô, seus primeiros momentos de uma paixão proibida, cujas grandes dificuldades, acrescidas tanto pelas diferenças sociais como econômicas, terminarem por trazê-los ao Brasil, quase 100 anos atrás, onde finalmente (depois de quatro anos de troca de correspondências e da chegada de vovô ) puderam se reencontrar e viver o seu amor.
No início dos anos oitenta, mochileiro, tive a oportunidade de viajar pelo interior da Hungria e da Tchecoslováquia, cujo cenário em tudo se assemelha ao encontrado por você em Stopnica: placas com palavras impronunciáveis, ruas esburacadas de lama, cenário cinza e frio ( era novembro ) e uma população sofrida e melancólica, praticando uma agricultura medieval.
Retratos de um cenário que fez parte da história, assim como a do senhor Fiszel, que a exemplo de nossos avós, ao aqui chegarem, muito colaboraram para o enriquecimento sócio-cultural de nosso país.
Confesso, sinto-me cheio de orgulho dessas histórias.
Forte abraço,
Hélio Masur
Amigo Hélio,
Vou me ater aqui àqueles a que você se referiu como pessoas “que muito colaboraram para o enriquecimento sócio-cultural de nosso país”, e aqui me permito incluir Fiszel. Dispensável dizer o quanto corcordo com a verdade de sua afirmação. Por oportuno, é bom dizer que um debate similar se alastra pela França dos dias de hoje. Sem os judeus, a França “continua sendo a França”? Uma expressiva população de não-judeus é a primeira a dizer que não; e concorda o quão desastroso seria uma partida em massa dos judeus da Europa. Destaquemos aqui a ação fortemente demagógica de Netanhyahu que se prevalece de episódios anti-civilizatórios – que atingem por igual judeus e não-judeus – para exortar os judeus a emigrar para Israel. Felizmente tenho ouvido da maioria dos judeus com quem conversei no mundo que o lugar que lhes cabe é na formação de fileiras com os homens livres para que, conjuntamente, possam combater o obscurantismo.
FD
Não conhecia o seu talento proustiano para descrever lugares, personagens e sensações. Um belo tributo ao amigo e mentor Fiszel. Nada como um texto proustiano para eternizae a memória das pessoas que admiramos e gostamos. Parabéns!
Tamara querida,
que bela e dourada homenagem fez o querido amigo Fernando a seu pai.
A descrição do interior da Polônia faz-me lembrar as de Dostóievski sobre o interior da Rússia em suas obras,onde além de vermos as ruas e casas sentimos até o gosto da comida ,que aparentemente não é das melhores. Conheci seu pai muito ligeiramente no escritório da Kon Engenharia onde ele era muito respeitado pelos meus amigos Samuel e João . Um beijo e nosso carinho. Puppy e Aluízio
Queridos Aluízio e Puppy. Obrigada pelo carinho. Fernando faz uma bela homenagem com este belo texto, a que meu pai, felizmente, teve a oportunidade de ler e se deleitar.
Bela homenagem. Seu coração enorme, Fernando, sempre visivelmente presente em tudo que faz. No final, a generosidade.
Tamara querida, queria lhe mandar um beijo e um abraço muito carinhoso. Também perdi meu pai e minha mãe e lembro que no início eu me perguntava como poderia não tê-los na minha vida, pra quem recorreria nos momentos de aperreio, com quem conversaria… e a vida segue e a gente aprende a se resolver. Mas a saudade e o sentimento de orfandade doem fundo. Tenho ido pouco a SP, mas na próxima vez, vou pedir a Fernando que marque um café para nos vermos. Força!
Fernando, texto lindo, lindo demais. Revivi a minha chegada na Cracóvia e lamentei muito não ter conhecido Sr. Fiszel. Beijo pra você também e pare de viajar pra marcar nosso café com Tamara.
Marta, obrigada. Difícil mesmo esta fase de lidar com a ausência física dos pais. Meu pai teve uma vida plena e deixou sua marca neste mundo.
Num momento de congraçamento e resgate da memória de Fiszel, eu não me perdoaria se não registrasse que foi pelos bons ofícios de meu então amigo-irmão Silvio Kaufman que conhecí a família Czeresnia e seu mais notório expoente. Se os descaminhos da idade madura nos separaram já há alguns anos, eu estaria incorrendo em injustiça incompatível com a estatura de nosso homenageado, se não reconhecesse, inclusive, que foi Silvio quem me interpretou os traços marcantes de um “chalutz” de carne e osso que, em poucos dias, se faria nosso amigo para sempre. Ironicamente, um feito que não conseguimos reeditar entre nós mesmos. Na verdade, tudo de determinante em nossas vidas se jogaria no espaço breve de uns poucos anos da virada de 70-80 em que éramos ambos sedentos de conhecimento e de vida. E, ao mesmo tempo, desbussolados dadas as nossas vivências longe de casa desde a adolescência e o olhar estrangeiro que trouxemos para nosso universo recifense. Indissociável dessa quadra são as boas recordações que trago das conversas com seus pais, Raquel e Abrão; de seus tios Paulo e Tânia Kaufman. Que essa pequena celebração que fazemos em torno de Fiszel reavive a chama de um tempo que não podemos – nem queremos – apagar. Se não entesouramos isso, o que de mais restará?
Meus queridíssimos amigos Dourado e “velho Kaufman”, muitas saudades,
Da muita intimidade de tê-los, ambos, como irmãos/amigos, desde sempre (Fernando, recém chegado da Alemanha, assiste agora, nesse exato instante, ao nascer do sol sentado em minha varanda, aqui em Boa Viagem), posso testemunhar, “de carteirinha”, tudo que vivenciamos, na sua mais intensa plenitude, os maravilhosos e inesquecíveis anos 70 e 80, as primeiras grandes farras, as festas e viradas de muitas incontáveis noitadas, várias quase intermináveis…
Testemunhos de um período de sonhos e aventuras desmensuradas, que marcaram tão forte e maravilhosamente nossas amizades e convivências e, onde permitimos expandir com pura espontaneidade todo um carinho que nunca, jamais, será esquecido.
É o que fica.
E, não é pouco
É tudo.
Do amigo,
Hélio Masur
Prezado Fernando o seu artigo sobre Fiszel Czeresnia é DOURADO,emocionante,como filho de imigrantes (Bessarabia)
e como participante ativo da nossa comunidade paticipando
de alguns eventos nacionais ,conheci em reuniões
esse LIDER ,li seu artigo sobre a sua procura da cidade
em que ele não mais voltou e as fotos no final.
Sou brasileiro,judeu e sionista frase linda e feliz.
Uma curiosidade as suas visitas na Benedito Chaves era
em Boa Viagem? Um forte abraço.
Germano Haiut
Querido Germano,
Para que conste: foi sob sua orientação e olhar carinhoso que comprei meu primeiro terno. Ademais, foi assitindo a seu magistral desempenho nos palcos que passei a amar o teatro. Seu “post” me alegra a alma tanto quanto foi receber hoje pela manhã um e-mail de Gilda Kelner. Vamos à sua pergunta: sei que temos uma Benedito Chaves em Boa Viagem. Mas à que me referi é outra – uma artéria bucólica que liga a Brigadeiro Faria Lima à rua Maria Carolina, em São Paulo. Foi lá que viveram meus amados Rosa e Fiszel os últimos vinte anos de suas vidas profícuas e generosas. Do outro lado da praça, pontificava o grande jurista Miguel Reale, também falecido. Celso Lafer mora uns metros adiante. Foi na varanda que dava para um jardim florido que privei do convívio de ambos. Juntos comemoramos as Grandes Festas e falamos sobre o mundo ano após ano. Pouco mais de uma semana depois de ter nos deixado, ainda elaboro dentro de mim a imensa saudade. Sem nenhuma chance de resolvê-la a pleno em meu coração.
Um abraço,
Fernando
Um belo artigo. Uma tocante homenagem póstuma.
O texto de Fernando sobre o ex-sogro me lembrou “Ida” que recém ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Ambos carregam cores que espelham tristeza, dor e a melancolia da velha Europa do leste. Coincidentemente na Polônia rural. Outro exemplo foi a da pintora Tomie Othake para quem a luz e a cor se revelaram no momento do desembarque no Brasil. Acredito que para muita gente , inclusive ele, o novo país logo virou esperança, otimismo. E para trás ficaram os tons neutros e apagados do preto, branco e cinza. Como já disse alguém mais acima é um texto marcadamente visual. Lavínia Costa
Fernando é um amigo que sempre nos surpreende com suas viagens e histórias.Sensivel,viajado,poliglota,entre outras qualidades.É um homem do mundo.
Faz alguns anos,decide fazer mais uma de suas aventuras.
Enfrentando intempéries e desconforto,parte em busca de um passado longinquo de um querido amigo judeu,nascido em Stopnica na Polonia,
Fiszel Czeresnia e que veio se radicar em São Paulo,aonde constitue
família,sem nunca ter retornado ao seu país de origem.
Com uma máquina fotográfica,registra o que via,pois,tudo já conhecia
através das fieis narrativas do amigo.Queria homenagear Fiszel,que infelizmente,não chegou a conhecer esse belo texto de Fernando,pois veio a falecer em 26/02/2015.
D.Diva,
É com prazer que informo Fiszel chegou a ler o relato acima e que recebeu as fotos em preto e branco que fiz de sua cidade. Isso aconteceu quando lá estive em 2004, no bojo de uma viagem a Kovno, Lituânia – outo centro judaico de tradição. Durante vários dias ele praticamente remontou o quebra-cabeças dos pontos cardeais de Stopnica, já que era dotado de excepcional senso espacial. Numa segunda leva, lhe mostrei umas trinta fotos que fizera de Auschwitz-Birkenau – objeto do segundo dia na região da Cracóvia. Que ele as sintetizasse de acordo com critérios mais íntimos. Para mim, de qualquer sorte, foram dois dias muito impactantes. Só nos anos seguintes eu conseguiria dissociar a bela cidade polonesa desses dois marcos. Incorporaria ao acervo a fábrica Schindler, é verdade, mas então esta já era uma face mais benevolente da História.
Um abraço,
Fernando
Amigos
Quase dois meses após o falecimento de Fiszel Czeresnia, tenho a alegria de dizer que todos os que lhe eram próximos vão muito bem. Logo teremos a criação de um “Acervo Rosa e Fiszel Czeresnia” em que serão reunidos seus livros; as valiosas “hagadot”; peças de coleção e duas dúzias de quadros de Israel que acompanharam a família desde sempre. Numa enorme pasta,cujo título é “Guerra dos Seis Dias”, encontrei centenas de matérias de jornais do mundo inteiro sobre o evento. Fiszel era dos grandes especialistas mundiais no tema e lhe devotava grande entusiasmo. O que não acontecia com a guerra do Yom Kippur, mais tarde, em 1973. Uma parte interessante da coleção são as centenas de fotos dele ainda jovem, na Palestina, uniformizado de “chalutz”, nos locais mais representativos do estado em formação. Na primeira assembleia do Knesset, numa foto consagrada, vê-se Fiszel num primeiro plano, próximo a Ben Gurion durante um aparte de Begin. De resto, a casa da Benedito Chaves será posta à venda. Como sete netos, atualmente tem uma na Holanda, um no Vietnã, uma que vive entre Buenos Ayres e São Paulo, outra em Campinas e os demais na capital – tal “diáspora” o deixaria feliz. Tamara desenvolve um bom trabalho ligado ao Terceiro Setor – onde se tornou um referência nacional – e Iara está no “Médicos sem Fronteira”, no Sudão, desde a semana passada, morando à beira do Nilo, para montar um programa de saúde mental para milhares de indivíduos no pequeno país. Segundo ela, partiu movida pelo amor à aventura do pai e o amor ao próximo que herdou da mãe. Quanto a mim, passo vez por outra diante da casa e já entrei lá por duas vezes. Já não há mais café nem bom papo. O jardim está exuberante, mas podado. Os passarinhos fazem algazarra na piscina e a escultura do anãozinho de expressão zangada, bem, está mais zangada do que nunca. Parece perguntar: cadê o outro baixinho que sentava na varanda e curtia os colibris? A primeira visita foi penosa; a segunda já foi mais fácil. Se tivesse dinheiro, compraria a casa e quase não mexeria nela. Qualquer hora dessas, eu mesmo a venderei. Muitas homenagens serão feitas em sua memória oportunamente, especialmente pela família Feffer – em consideração aos muitos anos de cooperação entre Fiszel e Leon Feffer. Outras homenagens serão feitas no kibutz Bror Chaïl, em Israel, com o aposição de uma pedra de memória no jardim. Para todos nós, seus amigos, a dor da perda começa a dar lugar à enorme alegria de tê-lo conhecido. Como diz Isaac Bashevis Singer, de quem ele tanto gostava, quando alguém morre, parece que fica tão distante que temos a sensação de termos passado a habitar dois mundos. À medida que o tempo passa, as sentimos tão próximas quanto se as pudéssemos tocar. É isso que começa a se operar.
Fernando
Amigas e amigos,
Quase cem dias depois da morte de Fiszel Czeresnia, o mundo já deu muitas voltas. Como dezenas de pessoas se fizeram presentes nesse espaço por ocasião de seu falecimento, achei por bem compartilhar com elas um episódio de hoje, 2 de junho de 2015, que está alinhado com a agenda do mundo: as entranhas da África. Vou ao ponto e logo veremos a conexão entre ambos.
Iara, filha mais nova dele, médica, psiquiatra, mãe de 4 filhos, esteve até essa semana em missão humanitária no Sudão, no “Médicos sem Fronteiras”. No meu entender, essa grandeza tem muito a ver com o legado intangível que Rosa e Fiszel deixaram – que ela mesma admite. Há pouco, recebi por e-mail esse relato trepidante que compartilho com os amigos de Será?.
É uma forma de irmos juntos até uma das mais remotas fronteiras da Terra.
“Ficamos 3 dias sob forte fogo cruzado, num bunker da ONU com mais 130 pessoas. Conseguimos sair em comboio, escoltados por coronel do exército até o aeroporto mais próximo e de lá finalmente fomos à capital, Juba. De Juba nos mandaram para Nairóbi, para tratamento psicológico pós traumático…De Nairóbi vim pra casa.
A verdade é que nosso acampamento estava em um ponto muito estratégico, entre a cidade e a refinaria de petróleo. Nosso vizinho de cerca era o “commissionaire” e estávamos na beira do Nilo. A situação era razoavelmente estável e segura porque a região estava fortemente defendida pelo exército. Em um dado momento os rebeldes se fortaleceram e resolveram tomar a cidade.
Fomos acompanhando a sua aproximação e nosso acampamento com certeza era um bom ponto de desembarque, já que vinham do outro lado do rio. Já estávamos há alguns dias preparados e fomos então para o acampamento da ONU, do outro lado da estrada, nos proteger. Viramos nós refugiados, deslocados. Os rebeldes então tomaram a cidade, no outro dia o exército retomou e continuaram os tiroteios e bombas por mais um dia. Estávamos literalmente embaixo do fogo cruzado. Víamos os tiros e as bombas passando em cima de nossas cabeças. Foi um tanto tenso e assustador!
A água estava escassa, uma bomba destruiu a caixa d’Água, e a comida também. Cena de filme!! O importante é que cheguei e estou bem. Antes destes acontecimentos estava muito feliz com a missão. O trabalho é muito desafiador e a população me deixou marcas profundas. Penso neles com preocupação, espero que estejam todos bem”.
É nessas horas que recupero um pouco da fé na humanidade.
Fernando
Hoje, domingo, aconteceu em São Paulo o descerramento da pedra tumular de Fiszel Czeresnia, falecido em fevereiro, de acordo com a tradição judaica. Em função de agenda na Itália, não pude comparecer. Mas cumpriu-se um novo ciclo de despedida ao amigo – longamente homenageado nesta Será?. Em 29 de novembro de 1947 – logo há 68 anos – houve o anúncio da Partilha da Palestina, anunciado por Oswaldo Aranha. Ali ele também cumpria um marco importante na vida uma vez que a consecução de Israel lhe tomara todas as energias disponíveis no vigor dos trinta e poucos anos. Registro minhas saudades e trago o nome de Fiszel à baila para que sua obra permaneça viva. Ainda tenho uns exemplares de “Uma história para meus netos” – uma narrativa palpitante sobre a contribuição da comunidade a São Paulo, ao Brasil e ao mundo. E um cândido relato da relação dele com os netos.
A imagem que recebi de Tamara e que fala por todas as palavras.
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Saudades, amigo.
Agora parece que foi prá valer!